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Processo n.º 16/2006-C em relacao a Princípio da imediação da prova (Processo n.º 16/2006-C) [2006] MZTS 10 (22 December 2006)

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Processo n.º 16/2006-C


Princípio da imediação da prova

Despacho de pronúncia

Objecto do processo

Poderes de cognição do tribunal

Suspensão condicional da pena

Nulidade da sentença

Proibição da reparação do agravo em processo penal



Acórdão de 22 de Dezembro de 2006


Sumário: I. Constitui omissão grave de diligências essenciais para o descobrimento da verdade – configurando a nulidade absoluta do processo, nos termos do nº 1 do artigo 98º do Código de Processo Penal – a falta de notificação dos declarantes e a sua consequente ausência do julgamento, na medida em que impede a respectiva audição pelo colectivo de juízes; II. O respeito pelo princípio da imediação – um dos mais elementares princípios sobre a forma de produção de prova em processo penal –, é essencial para assegurar a relação de proximidade que deve existir entre os participantes no processo e o tribunal, de modo a que este possa obter uma percepção própria dos elementos que servirão e base à decisão; III. O despacho de pronúncia tem por efeito fixar o objecto do processo, isto é, limitar os poderes de cognição do tribunal, no que aos factos gravosos para o réu diz respeito. Por isso, a convolação para infracção diversa e mais grave daquela por que o réu foi acusado só é permitida na condição de os respectivos elementos constitutivos serem factos que constem da pronúncia; IV. A suspensão condicional da pena, consagrada no artigo 88º do Código Penal, tem como pressupostos a condenação em pena de prisão, ou de multa, ou de prisão e multa, não abrangendo, por conseguinte, as penas de prisão maior; V. É nula, nos termos da segunda parte da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil – aplicável subsidiariamente, nos termos do § único do artigo 1º do Código de Processo Penal –, a sentença que conheceu de questões de que o tribunal não podia tomar conhecimento; VI. Em processo penal não é permitida a reparação do agravo, mas, tão-somente, a sustentação ou o esclarecimento dos fundamentos da decisão, conforme o estatuído no artigo 650º do Código de Processo Penal; VII. Com excepção das regras próprias do processo sumário-crime (ver artigo 561º do Código de Processo Penal), o prazo de interposição de qualquer recurso é de cinco dias, a contar da notificação do despacho, sentença ou acórdão.




Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal Supremo:


Na 6ª Secção Criminal do Tribunal Judicial da Província de Sofala foi Manuel Joaquim Nharingue, solteiro, nascido a 7 de Junho de 1965, sargento principal da PRM, filho de Joaquim Nharingue Majibire e de Zeca Zambuco, natural da Beira e residente no 7° Bairro – Matacuane, da mesma cidade, pronunciado como autor material de um crime de homicídio preterintencional, previsto e punido nos termos do § único do artigo 361° do Código Penal, por haverem indícios bastantes de, no dia 26 de Abril de 2004, no Posto Policial da localidade de Mucheve, de que era o respectivo comandante, ter agredido, com intenção de o molestar na sua integridade física, o cidadão Simão Chidombe Mucola, de 66 anos de idade, produzindo-lhe as lesões traumáticas descritas a fls. 24 e sgt. e 85 e segt., em consequência das quais este viria a morrer no dia seguinte.


Realizado o julgamento, o tribunal, entendendo que o réu agira com intenção de matar, na modalidade de dolo eventual, condenou-o, como autor de um crime de homicídio voluntário, previsto e prevenido pelo artigo 349° do Código Penal, na pena de 16 anos de prisão maior, no máximo de imposto de justiça, no pagamento de 100.000,00MT (cem mil meticais) de emolumentos ao defensor oficioso e na indemnização de 20.000.000,00MT (vinte milhões de meticais) aos familiares da vítima pelos danos morais causados. Porém, “atendendo ao diminuto grau de culpa e ao bom comportamento moral do réu” (sic), foi a pena declarada suspensa pelo período de cinco anos.


Da decisão assim proferida interpôs o réu, através do seu defensor oficioso, o presente recurso, alegando que não está provada a vontade de matar e, ainda que estivesse, a condenação na pena de dezasseis anos de prisão maior “só poderia ser nos termos do artigo 447° (corpo) do CPP, e deste artigo não se faz menção na sentença...”, além de que não existe base legal para a suspensão de uma pena de prisão maior. Por estes motivos pede que a pena “seja fixada nos termos previstos no artigo 361°, § único, mantendo-se a suspensão da sua execução”.


Admitido o recurso, o Mmo. Juiz de Direito veio, em jeito de “reparação do agravo” (fls. 133), reconhecer o erro da suspensão de execução da pena, dar essa suspensão sem efeito e, “considerando que o réu não requereu a interposição do recurso na sala de audiência, que era a única forma de suster a ordem de recolha à cadeia, só vindo a fazê-lo no dia seguinte...”, determinar a sua captura e condução à Cadeia Central da Beira, para cumprimento da pena, enquanto se aguarda a decisão do recurso...


Deste despacho foi tempestivamente interposto novo recurso, com fundamento em não ter sido respeitado pelo Mmo. Juiz o efeito suspensivo do recurso anterior, estabelecido pelo artigo 658°, nº 1, do Código de Processo Penal, e em não fazer qualquer sentido a referência à obrigatoriedade de apresentação do requerimento na sala de audiências, na medida em que se está na presença das regras do processo de querela e não nas do processo sumário-crime, pelo que se deve considerar a decisão “nula e de nenhum efeito, por ser ilegal o despacho do meritíssimo juiz...”.


O Ministério Público não contra-alegou na primeira instância e, nesta, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer considerando não ser legal a convolação efectuada, não ter sido alegado nem provado que o réu agredira a vítima com intenção de matá-la, bem como não conter o despacho de pronúncia referência alguma aos factos integradores do homicídio voluntário do artigo 349° do Código Penal, pelo que, e em conclusão, se deve anular o acórdão recorrido, por violação do artigo 668°, n° 1,alínea d), do Código de Processo Civil, aplicável por força do § único do artigo 1° do Código de Processo Penal.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Tudo visto.


*

* *


São inteiramente válidos e procedentes os fundamentos invocados pelo recorrente nas suas alegações, tal como são correctos os comentários da Digníssima representante do Ministério Público no seu douto parecer. Muito embora uns e outros se mostrem prejudicados por uma questão que lhes é prévia e que passaremos a conhecer imediatamente, ex officio, por ter afectado de modo irremediável a justa decisão da causa, não deixaremos de pronunciar-nos sobre cada um dos pontos levantados, por razões puramente didácticas.


Comecemos pela questão prévia:


Falta injustificada de produção de prova na audiência de julgamento


Na acusação deduzida a fls. 74 e segts. e mantida pelo despacho de fls. 99, foram arrolados como declarantes João Simão Chidombe (fls. 10), Filipe João Machava (fls. 12) e António José Vurande (fls. 18), além de oferecida a prova documental constante dos autos (fls. 24 e segt.).


Pronunciado o réu e designada data para julgamento, a respectiva audiência haveria de se realizar sem que os referidos declarantes tivessem sido sequer notificados para comparecer, pelo que a produção de prova se limitou ao interrogatório do acusado (fls. 111). Isto, apesar de, sem nenhuma justificação aparente, o despacho de fls. 107 ter marcado o julgamento “à revelia do réu”


Deste modo, é lícito concluir que, na apreciação da prova, o tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto tendo em conta, unicamente, as declarações do Manuel Nharingue na audiência de julgamento e os elementos probatórios recolhidos durante a fase instrutória do processo. Ora, conforme se decidiu em acórdãos anteriores deste tribunal, “só a prova produzida em julgamento – ainda que logicamente relacionada e conjugada com os elementos recolhidos durante a instrução – pode constituir, nos termos legais, fundamento da decisão condenatória (...) A prova indiciária, resultante as mais das vezes da investigação oficiosa e obtida por métodos inquisitórios, tem de passar pelo crivo dos debates em audiência para se afirmar como verdadeira prova. Se ela não resiste à publicidade e fiscalização judicial nem à contraditoriedade da discussão, nenhum efeito de carácter substantivo se lhe pode reconhecer...” (v. Acórdãos de 4 de Setembro de 1992 – Processo n.º 12/91-2ª, e de 17 de Abril de 1998 – Processo n.º 38/95–C).


O que está aqui em causa, verdadeiramente, é a afirmação do princípio da imediação – um dos mais elementares princípios sobre a forma de produção de prova em processo penal –, através do qual se alcança a relação de proximidade que deve existir entre os participantes no processo e o tribunal, de modo a que este possa obter uma percepção própria dos elementos que servirão de base à decisão.


Por isso se deve, em nosso entendimento, considerar como omissão grave de diligências essenciais para o descobrimento da verdade a falta de notificação dos declarantes e a sua consequente ausência do julgamento, impedindo a respectiva audição pelo colectivo de juízes.


Essa omissão constitui nulidade absoluta do processo, tal como estabelecido pelo nº 1 do artigo 98º do Código de Processo Penal. Nulidade que só poderá ser sanada com a repetição do julgamento, não só para produção integral da prova, mas também para permitir a avaliação da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais, em ordem à formação da convicção do tribunal sobre a matéria de facto.

Acresce que, como se pode ver na acta de fls. 111, não foi dada oportunidade ao réu de, pela última vez, se pronunciar quanto aos factos que lhe são imputados, ouvindo-o em tudo o que dissesse a bem da sua defesa (artigo 468º do Código de Processo Penal). Também aqui se desrespeitou uma formalidade essencial do processo, com repercussão directa na justa apreciação da causa.


Passemos agora às questões levantadas pelo recorrente e pelo Ministério Público no seu parecer:


Condenação por crime mais grave do que o indicado no despacho de pronúncia


Os autos mostram que o réu Manuel foi pronunciado, por despacho de fls. 99 v. e segts., como autor de um crime de homicídio preterintencional, tipificado no § único do artigo 361° do Código Penal em vigor.


Como resulta do disposto no artigo 447º do Código de Processo Penal, a pronúncia tem por efeito fixar o objecto do processo, isto é, limitar os poderes de cognição do tribunal, no que aos factos gravosos para o réu diz respeito. Por isso, a convolação para infracção diversa e mais grave daquela por que o réu foi acusado só é permitida na condição de os respectivos elementos constitutivos serem “... factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente”.


Ora, a decisão recorrida, além de ser totalmente omissa quanto à indicação dos dispositivos legais em que se baseou, conheceu, efectivamente, de matéria fáctica que não consta do despacho de pronúncia – designadamente, que o réu agiu com intenção homicida, na modalidade de dolo eventual –, do que resultou a condenação por crime mais grave que o constante do despacho de pronúncia.


O conhecimento de questões que o tribunal não podia conhecer constitui, nos termos da segunda parte da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil – aplicável subsidiariamente, nos termos do § único do artigo 1º do Código de Processo Penal – causa de nulidade da sentença.


Suspensão da pena de prisão maior aplicada


Depois do esforço argumentativo no propósito de justificar a qualificação jurídica dos factos como homicídio voluntário, previsto e punido pelo artigo 349º do Código Penal, e a condenação do réu numa pena – 16 (dezasseis) anos de prisão maior, entre outras medidas – muito além da que o réu poderia esperar, em função da pronúncia, o acórdão impugnado termina, incompreensível e contraditoriamente, por decretar a suspensão da execução da mesma pena por um período de 5 (cinco) anos, “atendendo o diminuto grau de culpa e o bom comportamento moral do réu” (sic).


Sem prejuízo da insuficiência das razões invocadas para fundamentar a decisão, que nos parece evidente, face ao conjunto de circunstâncias agravantes dadas como provadas, o certo é que – como muito bem salienta o recorrente – a chamada suspensão condicional da pena vem consagrada no artigo 88º do Código Penal e tem como pressuposto a “condenação a pena de prisão, ou de multa, ou de prisão e multa”, não abrangendo, por conseguinte, as penas de prisão maior.


Esta é, sem dúvida, outra causa de nulidade do acórdão, pelas mesmas razões de direito anteriormente aludidas.


Despacho de fls. 133, a que o Mmo. Juiz chamou de “reparação do agravo”


Depois de admitido o recurso (fls. 122) e de apresentadas tempestivamente as respectivas alegações (fls. 126), o Mmo. Juiz veio, no despacho de fls. 133, em jeito de reparação do agravo, reconhecer o erro da suspensão da execução da pena e dar a mesma sem efeito.


Salvo o devido respeito, trata-se de mais um equívoco manifesto. Em processo penal não é permitida a reparação do agravo, mas, tão-somente, a sustentação ou o esclarecimento dos fundamentos do decidido (veja-se o artigo 650º do Código de Processo Penal). O poder de cognição do tribunal fica esgotado assim que a decisão é notificada às partes, devendo a apreciação do recurso ser devolvida ao tribunal superior.


Falta de pronunciamento quanto ao segundo recurso


A fls. 142 e segt. o réu reagiu com um segundo recurso ao já aludido despacho de fls. 133, na parte em que “… considerando que (…) não requereu a interposição do recurso na sala de audiências, que era a única forma de suster a ordem de recolha à cadeia, só o vindo a fazer no dia seguinte…” (sic), foi determinada a recolha do Manuel Nharingue à Cadeia Central da Beira, “… para o cumprimento da pena, enquanto se aguarda o veredicto do Tribunal Supremo”


Trata-se, como é bom de ver, de outra decisão incompreensível. Com que fundamento legal se afirma que a interposição do recurso na sala de audiências era a única forma de suster a ordem de recolha do réu à cadeia? Na altura do julgamento o réu encontrava-se em liberdade provisória sob termo de identidade e residência (fls. 68 e 69 A). Uma vez interposto recurso da sentença, cujo efeito é o que vem estabelecido no artigo 658º do Código de Processo Penal (suspensão do processo), e não se mostrando que, em qualquer momento, tenha deixado de cumprir as obrigações referidas no artigo 269º do mesmo Código, nenhuma justificação havia para lhe alterar aquele estatuto, muito menos invocando uma condição que a lei, de modo nenhum, impõe.


Na verdade, com excepção das regras próprias do processo sumário-crime (ver artigo 561º do Código que temos vido a citar), o prazo de interposição de qualquer recurso é de cinco dias, a contar da notificação do despacho, sentença ou acórdão. Esse prazo foi cumprido pelo recorrente, a quem se reconhece razão, também quanto a este ponto.


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Por todo o exposto, dando em parte provimento ao recurso, decidem, em nome da República de Moçambique, anular o julgamento realizado em primeira instância e a sentença subsequente, ordenando a baixa dos autos para que se proceda a novo julgamento, no respeito das normas legais aplicáveis.


Sem custas.


Maputo, 22 de Dezembro de 2006


Assinado: João Carlos Trindade – José Norberto Carrilho – Luís António Mondlane