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[2001] MZTS 3
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Processo nº 114/97-C em relacao a Litispendência (Processo nº 114/97-C) [2001] MZTS 3 (4 October 2001)
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Processo nº 114/97-C
Litispendência
Recurso
Não pronúncia
Transporte de estupefacientes
Injuria a autoridades
Acórdão de 4 de Outubro de 2001
Sumário:
O réu não tem legitimidade para recorrer do despacho de não pronúncia pelo que o pedido de recurso deve ser indeferido (art. 371º/4 e 647º C. P. Penal);
Não há fundamento para a litispendência se os processos em causa estiverem, ainda, na fase de instrução preparatória, pois a litispendência apenas se verifica com a introdução do feito em juízo;
Comete o crime de transporte de estupefacientes aquele que for surpreendido na via pública acompanhando uma carga de quarenta toneladas de haxixe acondicionado em dois contentores, crime p. e p. pelo nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 420/70, de 3 de Setembro.
Comete o crime de injúrias a autoridades, aquele que oferecer dinheiro ao agente da polícia para que o crime de transporte de estupefaciente não seja encaminhado à esquadra para efeitos de procedimento criminal;
A destruição de estupefacientes apreendidos resulta, em primeira linha, da perigosidade do crime, da necessidade de evitar que os fins legalmente perseguidos possam ser frustrados com a utilização da droga apreendida para fins ilícitos. É uma exigência da preservação da saúde pública e, como tal, as despesas daí decorrentes não podem ser imputadas ao réu dos autos por não serem devidas.
Acórdão
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal Supremo
A..., solteiro de 33 anos de idade, avicultor, filho de B... e de C..., natural de Maputo e residente, à data da prisão, na Av. Ahmed Sekou Touré nº 790, nesta cidade;
D..., casado de 38 anos de idade, empresário filho de E... e de F..., natural da Ilha de Moçambique e residente, a data dos factos, na Av. Julius Nyerere, nº 137 na Cidade de Maputo.
Na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo foram os réus submetidos a julgamento, acusados de haverem praticado, por autoria material, o crime de tráfico de estupefaciente previsto e punido pelo artigo 2, nº 1 do Decreto-Lei nº 420/70.
Vem ainda incurso o primeiro arguido no crime de injúrias contra autoridade pública, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.
Efectuado o julgamento, o tribunal considerou o réu A... autor de um crime de transporte de estupefacientes p. e p. do art. 2º do Decreto-Lei nº 420/70, de 3 de Setembro, em acumulação com o crime de injúrias p. e p. pelo artigo 181º de C. Penal. O tribunal considerou provada a agravante da circunstância 34º (acumulação) do artigo 34º do C. Penal, militando, a seu favor, o facto de ser delinquente primário.
Em consequência, foi condenado na pena de 1 ano de prisão pelo crime de injúria e sete anos de prisão maior e 1.000.000,00 Mt (um milhão de meticais) de multa pelo crime de transportes de estupefacientes.
Feito o cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 102º do C. Penal, foi o réu condenado a pena única de 8 anos de prisão maior, 1.000.000,00 Mt (um milhão de meticais) de multa e indemnização a favor do Estado no valor de 2.242.000.000,00 Mt (dois biliões, duzentos e quarenta e dois milhões de meticais) – valor despendido na incineração da droga apreendida.
Mais foi condenado no pagamento de 800.000,00 Mt (oitocentos mil meticais) de imposto de justiça e emolumentos a favor da defesa de acordo com a tabela em vigor.
O réu D... foi despronunciado e, consequentemente posto em liberdade.
Não se conformando com o acórdão assim tirado o réu A... interpôs o presente recurso que foi admitido. Em alegações ao recurso, oferece o recorrente os seguintes fundamentos.
Que na fase complementar da instrução do processo, o réu suscitou diversas nulidades, excepções e questões prévias que foram devidamente apreciadas e decididas no despacho de pronúncia. Donde o julgamento das questões suscitadas durante a instrução contraditória poderá determinar a nulidade dos actos posteriormente praticados, incluindo o julgamento e a sentença recorrida;
“Que o réu não transportou o haxixe e nunca suspeitou que acompanhava uma carga desta natureza”;
“Que o julgamento e a sentença deverão ser declarados nulos e de nenhum efeito, devendo ser julgadas procedentes as excepções e nulidades deduzidas aquando da abertura da instrução contraditória”;
“Dado existir conexão entre o presente caso e os dois que estão na Procuradoria-geral deverão os autos ser enviados à Procuradoria-geral para prosseguir a instrução preparatória...”
O réu “deverá ser absolvido porque não transportou haxixe apenas acompanhou uma carga que havia sido depositada nos armazéns da Emochá, já embalada, sem saber donde vinha, não podendo de modo algum suspeitar que se tratava de droga”.
Sustentando a posição tomada, a Meritíssima juíza do tribunal recorrido, mantém os fundamentos que serviram de base aos despachos de fls. 804 e 806, 838 e 844 e ao acórdão de fls. 223 e segts., (vide fls. 962).
Nesta instância, o Exmo. Representante do M. P. expendeu, no seu douto parecer de fls 977, que “em virtude de as irregularidades constatadas estarem compreendidas no artigo 100º do C. P. Penal é de lhes aplicar o disposto no parágrafo 2º do citado artigo”.
Prosseguindo, afirma que “quanto ao mérito da decisão, não sobram dúvidas de que a mesma fez uma excepcional apreciação dos factos e boa aplicação da lei por isso a mesma deve ser mantida “in toto”.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
Analisemos, pois os fundamentos aduzidos pelo recorrente.
Quanto às nulidades e excepções arguidas aquando da abertura da instrução contraditória.
Invoca o recorrente que o despacho que ordenou a abertura da instrução contraditória foi objecto de recurso que foi admitido a fls. 703 tendo sido oportunamente apresentadas as respectivas alegações. O despacho acima aludido foi objecto de impugnação por não ter atendido às pretensões da defesa, designadamente as nulidades e excepções suscitadas.
Alcança-se dos autos que as nulidades e excepções referidas são irregularidades constatadas em actos ou diligências processuais que tinham como objecto obter elementos de prova sobre o envolvimento do réu D... no crime de tráfico de estupefacientes ou seja como o proprietário das 40 toneladas de haxixe.
Variada ordem de razão deita por terra a relevância e, consequentemente a eventual procedência de tais nulidades ou excepções, senão vejamos:
O acórdão deste tribunal, de 21 de Novembro de 1995, inserto a fls. 161 e segts, concluindo pela inexistência de indícios suficientes de imputação da prática do crime atribuído ao arguido D..., ordenou a sua imediata soltura aguardando em liberdade os ulteriores termos processuais.
Por força deste acórdão o processo ficou a aguardar melhor produção de prova susceptível de fundamentar a indiciação que pendia sobre D... respeitante à autoria do crime de tráfico de estupefacientes.
Como mais adiante se verificou, D... veio a ser despronunciado, tendo sido mandado em paz e em liberdade (fls 838)
Por outro lado, diz o recorrente que “o ex-arguido D..., embora, tenha sido despronunciado, interpôs recurso do despacho de pronúncia na parte referente à decisão sobre nulidades e excepções”. O recurso não foi admitido, tendo sido apresentada uma reclamação. Ora, pelas razões acima expostas, as questões suscitadas acham-se hoje prejudicadas pela despronúncia do recorrente, o que lhe retira legitimidade de impugnar o despacho de não pronúncia.
Tem-se, pois que os fundamentos acima expostos mostram-se prejudicados pelo despacho de não pronúncia de que beneficiou o arguido recorrente. Na verdade as nulidades invocadas respeitam a irregularidades processuais relativas ao reconhecimento do ex-arguido in pluribus, e a demais actos processuais que só manteria interesse a sua análise se tivessem conduzido à pronúncia e eventual condenação do réu. Quanto ao segundo fundamento, acompanhamos a Meritíssima Juíza que indeferiu o recurso (fls. 853) com o fundamento de que o réu, favorecido pela não pronúncia não tem legitimidade para impugnar esta decisão. E outra interpretação não pode ser extraída das disposições dos artigos 371º e nº 4º do artigo 647º do C. P. Penal. Por outro lado, é esta a orientação que tem sido seguida por este tribunal.
Invoca ainda o ilustre patrono do recorrente que o ex-arguido D... deduziu um incidente de suspeição contra a Meritíssima Juíza que presidiu à instrução contraditória. Uma vez julgado pelo Meritíssimo Presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo foi o mesmo considerado improcedente, decisão esta igualmente impugnada pelo ex-arguido. Igual posição àquela acima já exposta em relação às nulidades e irregularidades se alinha a respeito da impugnação deste incidente.
Ademais, tais nulidades ou excepções foram dirigidas em sede da defesa do ex-arguido D... que veio a ser restituído à liberdade, por insuficiência de prova indiciária fundamentadora dos factos a ele imputados, não se comunicando ao réu ora recorrente.
2. Quanto à alegada existência de conexão entre os presentes autos e os processos nºs 498/95 e 76/96 referente G... e H..., respectivamente em Nampula e Maputo
A pretensão apresentada pelo Vice procurador-geral da República (fls. 790) foi desatendida pelo Juiz em despacho fundamentado conforme se reporta a fls. 804 e seguintes dos autos.
Com efeito, requereu aquele ilustre Magistrado a suspensão dos presentes autos até à conclusão da instrução preparatória dos processos nº 76/96 e 498/95 e que entretanto, os presentes autos deveriam ser remetidos à Procuradoria-geral da República.
Sustentando o seu pedido, o então Vice procurador-geral da República alegou a necessidade de se evitar o perigo de litispendência com a continuação da instrução contraditória e a conexão objectiva, impondo-se, assim, que todos os arguidos respondessem conjuntamente no juízo competente para o julgamento, ao abrigo do disposto nos artigos 56º e 146º do C. P. Penal.
A conexão objectiva, ditada por imperativo de economia processual, tem em vista evitar repetição das mesmas provas e argumentos que servem de base para invocação da conexão de crimes. De referir, no entanto, que a conexão de crimes que justifica o afastamento de um dos princípios basilares do processo penal que é o do juiz natural não pode ser tomado rigidamente a ponto de originar a paralisação de um processo em cujo pleito já foi introduzido em juízo, com o recebimento da acusação, encontrando-se já na fase da instrução complementar. Diferente seria se o alto Magistrado do M. P. requeresse a apensação dos aludidos processos, concluída que fosse a instrução antes da fixação definitiva do objecto do processo que se alcança com o despacho de pronúncia.
Com efeito, a litispendência verifica-se com a introdução do feito em juízo, mesmo antes da fixação definitiva do objecto do processo que só se alcança com o despacho de pronúncia. Ora, no caso em apreço, os processos referidos estão ainda na fase da instrução preparatória, não havendo, portanto fundamento para a alegada litispendência.
Não procede assim o fundamento invocado, sendo de aplaudir a decisão da Meritíssima juíza a este respeito.
Ao desatender-se o fundamento aqui invocado, igualmente cai por terra a invocação de que o julgamento e a sentença devem ser declarados nulos e de nenhum efeito por força das nulidades e excepções deduzidas aquando da abertura da instrução contraditória.
3. No que respeita à alegação de que o réu, ora recorrente, não transportou o haxixe e nunca suspeitou que acompanhava carga daquela natureza
Valorando a prova recolhida e vertida nos autos, dá-se como assente que: no dia 18 de Maio de 1995 pelas 14H00, o réu A... foi interpelado pela polícia, na Avenida de Moçambique, diante das instalações da ENAFRIO, quando fazia transportar num camião da TAC dois contentores, contendo 1938 latas de quatro galões cada, cheias de produto que viria a apurar-se como sendo resina de cannabis sativa, vulgarmente designada por haxixe, produto este que consta da lista a que se refere o artigo 1º, nº 1 do Decreto-Lei nº 420/70, de 3 de Setembro.
Ao ver-se interceptado, o réu dispôs-se a pagar ao agente da autoridade a importância de 3.545.000,00 Mt, em troca da não verificação do conteúdo dos contentores, mas sem sucesso.
O réu afirma não conhecer a natureza do produto que fazia transportar no camião, nos dois contentores. Certo é que o conhecimento do facto de se tratar de estupefaciente cuja detenção, tráfego e transporte é proibido por lei, sendo privativo do foro íntimo, só pode ser exteriormente percepcionado quando revelado ou, por qualquer modo manifesto. Tal revelação pode ser espontânea, por meio de palavras mas também pode ser por acções ou mesmo omissão, isto é, pela conduta do agente. É da análise da sua conduta que se poderá aquilatar ou não do conhecimento, pelo réu, de que o produto era proibido por lei o seu transporte.
Da prova recolhida, se constata que o réu, ora recorrente, não só participou directamente na armazenagem do produto, no seu acondicionamento nos contentores, na colocação dos contentores no camião da TAC, como também cuidou de dificultar a abertura ou vistoria dos contentores durante o transporte, dispondo as portas dos mesmos viradas para a cabine. A tudo isso acresce-se ainda a oferta de uma quantia em dinheiro ao agente da polícia que interceptou o camião. Foi o réu que contratou a empresa TAC, assim como os homens das máquinas empilhadoras, procedendo, igualmente ao pagamento dos respectivos serviços.
Por outro lado, quando perguntado pelos documentos da carga, respondeu que quem os tinha era outra pessoa. Ora, se o réu foi contactado pelo dono da mercadoria para proceder à embalagem da mercadoria e o transporte, teria como mais elementar cuidado indagar da natureza e quantidade do produto e, munir-se da documentação respectiva. Este conhecimento permitiria ao réu tomar as precauções necessárias para o transporte e conservação da mercadoria, enquanto estivesse sob a sua responsabilidade.
Pelas razões expostas, não pode o réu afirmar que não transportou o haxixe, pois que o produto que se encontrava acondicionado nos dois contentores, quando feita a análise laboratorial veio a confirmar-se de que se tratava de resina de cannabis sativa, isto por um lado. Por outro, todo o circunstancialismo que rodeou a conduta do réu, desde o armazenamento, acondicionamento e transporte, actividade esta que contou com o seu directo envolvimento o que permite concluir que o réu tinha conhecimento da natureza do produto que transportava.
Deste modo é de aplaudir a qualificação jurídico-penal dos factos dada pelo tribunal de primeira instância.
Os factos dados como provados e imputados ao réu são hoje mais gravemente punidos por diploma aprovado em data posterior à sua verificação. Todavia, tendo em conta o princípio da não retroactividade da lei penal, princípio esse com foro constitucional conforme o nº 2 do artigo 99 da Constituição da República, a lei aplicável ao caso sub júdice é o Decreto-Lei nº 420/70, de 3 de Setembro e não a Lei nº 3/97, de 13 de Março.
Nestes termos e, pelo exposto, os juízes deste tribunal , alterando a medida da pena, condenam o réu A..., com os demais sinais nos autos, nas penas parcelares de 6 meses de prisão pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do C. Penal, 3 anos de prisão maior e 30.000.000,00 Mt (trinta milhões de meticais) de multa pelo crime de transporte de estupefaciente p. e p. pelo nº 1 do artigo 2 do Decreto-Lei nº 420/70, de 3 de Setembro, referido ao artigo 1 da Lei nº 5/99, de 2 de Fevereiro que actualizou as penas de multa. Feito o cúmulo jurídico (artigo 102, nº 2 do C. Penal), vai o réu condenado na pena unitária de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão maior e 30.000.000,00 Mt (trinta milhões de meticais) de multa.
Revogam a indemnização a favor do Estado fixada pelo acórdão recorrido por não ser devida.
Condenam o réu no máximo de imposto de justiça nesta instância
Maputo, 04 de Outubro de 2001
Ass: Luis António Mondlane Mondlane e Ozias Ondja