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Proc. nº 60/95 - A em relacao a Recurso, Circunstâncias modificativas (Proc. nº 60/95 - A) [2001] MZTS 2 (21 September 2001)

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Proc. nº 60/95 – A


Recurso

Falta de declarantes ao julgamento

Furto doméstico

Circunstâncias modificativas

Instrução contraditória

Despacho de pronúncia

Assistente






Sumário:

  1. Fora dos casos de recurso por imposição legal ou hierárquica, o M.P. tem legitimidade para interpor recurso sempre que discordar da sentença (art.º 647.º, N.º 1, do CP Penal);

  2. A exigência da declaração de prescindir ou não do recurso feita no artigo 531.º e seguintes do C. P. Penal não é aplicável ao processo de querela, estando reservado a formas de processo menos solenes;

  3. A audiência de discussão e julgamento não pode ser adiada por falta de qualquer declarante que não seja considerado indispensável (art. 421º do C. P. Penal). Não basta o M.P. invocar a indispensabilidade de qualquer declarante. Terá que demonstrá-lo e convencer o Tribunal da sua convicção;

  4. Para a existência do crime de furto doméstico é necessária a verificação dos elementos típicos do crime de furto, além da qualidade especial dos autores previsto nos N.ºs 1 a 4 do artigo 425.º do Código Penal;

  5. Para que seja válida a alegação do M.P. de que os Réus devam ser condenados em penas mais graves, é necessário que o M.P. traga dados indispensáveis e descreva circunstâncias agravantes, com incidência especial na culpa dos arguidos, que permitam avaliar o seu grau de culpabilidade de uma forma diferente daquela que foi feita pelo tribunal "a quo;

  6. A substituição de penas mais graves por outras mais leves é uma faculdade excepcionalmente concedida pela lei e não pode ser operada discricionariamente. A atenuação extraordinária da pena só deve ser utilizada em presença de circunstâncias que se revistam de um forte valor atenuativo;

  7. A falta de notificação da acusação ou do despacho de abertura da instrução contraditória impede o Réu de exercer plenamente o seu direito de defesa, pelo que o despacho de pronúncia deve ser considerado nulo, afectando consequentemente o julgamento do Réu à revelia e a sentença que o condenou;

  8. Se o ofendido não se constituir assistente e não proferir uma acusação sua, não pode ser considerado parte acusadora. Sendo assim, não é admissível que o tribunal o condene a pagar uma indemnização por perdas e danos ao Réu, prevista no artigo 453.º do C. P. Penal.





Acórdão


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal:


Nos autos de querela nº 312/95 da 1ª Secção Criminal do Tribunal Judicial da Província da Zambézia, foram condenados "na pena de dois anos de prisão e multa de seis meses à taxa de quatrocentos meticais diários", por haverem sido considerados "autores materiais do crime de abuso de confiança p. e p. pelos arts 453º, nº 5º, do Código Penal, com as alterações introduzidas pela Lei nº 1/89, de 23 de Março", os seguintes Réus já devidamente identificados naqueles autos:


  1. A...

  2. B...

  3. C...

  4. D...

  5. E...

  6. F...


No mesmo processo, foram condenados, "como encobridores, nos termos do nº 1 do Artº 23º, do crime de abuso de confiança p. e p. nos termos do art. 453º, 421º, nº 5º, e 106º, nº 1, do Código Penal", na pena de um ano de prisão e multa de dois meses e taxa de oitocentos meticais diários", os seguintes Réus igualmente identificados nos autos:


  1. G... e

  2. H...


Todos estes Réus foram também condenados "no pagamento de imposto de justiça, procuradoria a favor do Cofre dos Tribunais e honorários ao seu defensor oficioso".


Além disso, o Tribunal condenou-os no "pagamento solidário de indemnização pelos danos causados ao PMA" (Programa Mundial de Alimentação), da seguinte forma:


  • Os Réus A..., B... e C...: 20.775.500,00MT;

  • D..., F... e E...: 83.286.154,00MT;

  • H...: 7.726.500,00MT.


Na mesma ocasião, foram absolvidos "por falta de elementos de matéria de facto nos autos" os seguintes Réus com os demais sinais de identificação no processo:


  1. I

  2. J...

  3. K


O Tribunal deliberou, finalmente, que o Réu I..., absolvido, "tem haver do PMA, pelos trabalhos prestados" o valor de 725.645.200.250,00MT.


Na 1ª instância, o Digno Agente do Ministério Público interpôs recurso que considerou ser "por imposição legal" e também por discordar da sentença, expendendo, em síntese, os seguintes argumentos:


Declarada aberta a audiência não foi dada a palavra ao Agente do M. P. para alegações nem foi perguntado se prescindia ou não do recurso, "violando-se deste modo o disposto no art. 531º e seguintes do Código de Processo Penal";


Em plenário, o M. P. não prescindiu da presença de vários declarantes e o seu pedido "foi inexplicavelmente indeferido";


As diligências necessárias para localizar os motoristas e proprietários que beneficiaram de 279 sacos de milho transportados nas viaturas MNB-09-78 e MNB-15-30 que se destinava à população de Cuamba, Província do Niassa foram "pura e simplesmente omitidas";


Os Réus G... e H... "cometeram o crime de furto doméstico, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts 425º, nº 3, e 421, nºs 4º e 5º, todos do Código Penal", não sendo portanto encobridores do crime de abuso de confiança como o Tribunal os considerou";


As penas em que os Réus foram condenados não se "encontram equilibradamente atribuídas", "atento o grau de culpabilidade dos Réus" pelo que "deveriam os Réus ser condenados em nunca menos de 4 anos de prisão maior";


"Existem provas bastantes nos autos da prática dos factos pelos Réus I... e seus dois filhos integrando a sua conduta o ilícito penal do art. 425º, nº3, e 421, nºs 4º e 5º, todos do Código Penal".


Conclui que a sentença deve ser "anulada por ser manifestamente injusta".


Contra-alegaram os Réus absolvidos I..., J... e K... Nas contra-alegações, de fls. 483 a 485, os referidos Réus dizem, em resumo, que:


O presente recurso deveria ser interposto "de ofício", "por exigência legal", visto tratar-se de uma querela".


Não é verdade que o Ministério Público não fez uso da palavra no início do julgamento", aliás, "tratando-se de uma querela não era necessário a declaração de prescindir ou não do recurso";


As pessoas que faltaram ao julgamento, "foram devidamente notificadas" como as demais, tendo sido ordenada "a leitura dos seus depoimentos ou declarações";


O pedido de "suspensão da audiência de julgamento para se proceder a uma nova instrução para se provarem factos que levassem à condenação dos ora recorridos" não foi atendido pelo Tribunal por ser totalmente violador do princípio do "ne bis in idem";


O Ministério Público nas alegações orais reconheceu que o processo foi mal instruído; "os autos demonstram que o PMA conseguiu da PIC e do Ministério Público a injusta incriminação" do empresário S., "não obstante o relatório final da PIC e da própria acusação declarar a inexistência de prova contra o S. ";


Fez-se a acusação dos Réus sem apontar concreta e especificadamente quais os factos que constituíam o corpo de delito;


"Não existe matéria condenatória"; está patente a inocência dos réus" absolvidos; e aqueles réus "não desviaram qualquer milho";


Não houve violação de qualquer preceito ou formalidade legal;


"A douta sentença recorrida não é passível de censura quanto à absolvição dos alegantes ora recorridos";


Concluem, pois, que " a douta sentença recorrida deve ser mantida".


O Então Procurador-geral Adjunto junto desta 1ª Secção Criminal emitiu o douto parecer de fls. 518v a 521, que é, em síntese, o seguinte:


De fls. 225 a 233 dos autos, foi lavrada a acusação provisória pelo MP pelo que se pressupõe ter sido feita em obediência ao disposto no art. 26º do Decreto-Lei nº 35007, de 13 de Outubro de 1945, por o MP não ter recolhido prova bastante dos elementos da infracção, ou de quem foram os seus agentes;


Porém, o MP não requereu a realização de diligências que reputava necessárias e que depois veio reclamar em audiência de julgamento;


Mas, mesmo no julgamento, limitou-se o MP a requerer a presença de declarantes já anteriormente ouvidos;


É por demais patente a insegurança dos elementos probatórios produzidos pela acusação em relação aos Réus absolvidos, o que se afigura consubstanciar deficiência de instrução;


Tendo, no entanto, deduzido acusação contra eles, caberia ao Agente do Ministério Público requerer as diligências complementares que entendesse necessárias, o que não se verificou.


"Por outro lado, a alegação do recurso do Ministério Público não indica a norma que se pretende violada" e o "Recorrente só discutiu a matéria de facto da qual pretende partir para justificar o ataque à decisão contida na sentença";


"Quanto às contra-alegações, nelas os Réus absolvidos rejeitam a posição do Agente do Ministério Público argumentando de forma incisiva e mantendo a sua posição de inocentes".


No que respeita aos Réus condenados, não se vislumbram na sentença os fundamentos que permitiram o uso da atenuação extraordinária da pena; além disso, os Mmºs Juizes invocaram mal o nº 1º do art. 91º do Código Penal, pois este preceito não faculta o poder de se atenuar extraordinariamente as penas; violou-se o art. 84º do C. Penal;


Afigura-se "deveras aleatória a decisão de se condenarem os Réus G... e H... como encobridores do crime de abuso de confiança".


Conclui que " deve ser dado provimento ao recurso interposto". "Ordenando-se a anulação do acórdão recorrido, devendo o processo baixar ao Tribunal a quo para ser julgado".


Colhido o visto do Venerando Juiz Conselheiro Adjunto, cumpre analisar e decidir:


  1. Sobre a "imposição legal" e a "exigência legal" do recurso


O Digno Agente do Ministério Público junto do Tribunal recorrido e o Ilustre Patrono dos Réus entendem, respectivamente, que o presente recurso foi interposto por "imposição legal", "deveria ser interposto de ofício, por exigência legal, visto tratar-se de uma querela".


Salvo devido respeito, pelas doutas opiniões expressas, o recurso que foi interposto pelo Ministério Público não pode ser considerado como tendo sido "por imposição legal", "por exigência legal" ou "de ofício".

Com efeito, prevê a lei processual penal, no seu respectivo Código, em que caso haverá obrigatoriamente lugar a recurso. Trata-se, nuns casos, de recursos que a lei, ela própria, obriga que sejam interpostos, independentemente da vontade, o posicionamento ou o interesse do Ministério Público. Por isso, se dizem interpostos "por imperativo legal". São recursos "por imposição legal", por exemplo, os interpostos em obediência aos arts 110º, § 1º 116º, 473º, § único, 526º e 670º do Código de Processo Penal, e por força do disposto nos §§ 1º e 2º do art. 647º do mesmo diploma.


Noutros casos, os recursos são obrigatórios para o MP por determinação especial ou genérica do seu superior hierárquico. E, por isso, se consideram interpostos "por imposição hierárquica".


Por outro lado, ao contrário do que entende o Ilustre Patrono dos Réus, o presente recurso não deveria ser interposto de ofício "visto tratar-se de uma querela". Na verdade, o facto de se tratar de uma querela não obriga à interposição de recurso por imperativo legal.


No presente recurso, não estamos diante de nenhuma das situações de obrigatoriedade de interposição de recurso cima referidas, isto é, fosse por imperativo legal, fosse por imposição hierárquica.


Tanto o Digno Agente do MP como o Ilustre Patrono dos Réus terão, talvez, querido aludir à obrigatoriedade de interposição de recurso nos casos previstos no art. 473º, § único, do C. P. Penal. Ali, prevê-se que o "Ministério Público recorrerá sempre das decisões condenatórias que impuserem qualquer das penas maiores fixas dos nºs 1º, 2º, 3º e 4º do art. 55º (…) do Código Penal". Ora, no caso sub judice, a sentença recorrida não "impôs" nenhuma das penas maiores "fixas" do art. 55º, nem nenhuma das penas do art. 57º do Código Penal.


Assim, não sendo o recurso em apreço obrigatório por lei, ao interpô-lo, o Ministério Público tê-lo-á feito apenas por discordar da sentença. Para tal tem legitimidade, nos termos do nº 1º do art. 647º do Código de Processo Penal.


Deve ser, por isso, considerado que o recurso foi interposto ao abrigo desta disposição legal, e não ex officio, por imperativo legal ou imposição hierárquica, com todas as consequências legais daí decorrentes, nomeadamente, quanto ao ónus de alegar.


  1. Sobre a declaração de que se prescinde ou não de recurso


O Digno Agente do MP, logo no início das suas alegações insurge-se contra o facto de na sessão de audiência de julgamento não se lhe haver perguntado se prescindia ou não de recurso e conclui que foi assim violado o art. 351º e seguintes do C. P. Penal.


Mas, não tem razão. Como referiu o Ilustre Patrono dos Réus, "tratando-se de uma querela não era necessária a declaração de prescindir ou não do recurso". Com efeito, o art. 531º e seguintes do C. P. Penal, respeitam a outras formas de processo penal menos solenes, e ao seu julgamento, e não ao processo de querela.


Visa aquela disposição duas finalidades: a primeira, expressamente regulada no art. 540º, restringe o direito de recurso apenas permitindo a sua interposição quando tenha havido declaração expressa de que dele não se prescinde; a segunda, a de determinar que os interrogatórios dos réus, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e de outras pessoas sejam reduzidos a escrito sempre que se haja declarado não se prescindir de recurso.


No caso em apreço, não só se estava em processo de querela, e por isso não se aplicava o invocado art. 531º do C. P. Penal, como também tais interrogatórios, depoimentos e declarações foram reduzidos a escrito.


Improcede, assim, a alegação do Recorrente.


3. Sobre a falta de declarantes ao julgamento


Considera o Digno Agente do Ministério Público que a presença de vários declarantes no julgamento era imprescindível, "dada a sua capital importância na descoberta da verdade material" e, por isso, entende que o Mmº Juiz Presidente não devia ter indeferido "inexplicavelmente" o seu pedido de adiamento.


Pois bem, mais uma vez, não lhe assiste razão. Por um lado, reza o art. 421º do C. P. Penal que "a audiência não poderá ser adiada por falta de qualquer pessoa que tenha de prestar declarações em audiência, salvo se o tribunal entender que a sua presença é indispensável para o esclarecimento da verdade". Competia ao MP demonstrar e convencer o Tribunal dessa indispensabilidade e não apenas invocá-la sem mais.


Por outro lado, dos arts IV e V das próprias alegações de recurso, resulta que a presença daqueles declarantes não era indispensável, já que eles prestaram declarações anteriormente (fls. 27, 28, 105, 106, 108, 116, 160, 168 e 169, respectivamente). O Digno Agente do MP, ele próprio, considera-as suficientes ao perguntar "não estarão aqui elementos indiciários mais que suficientes".


É, portanto, paradoxal que ao mesmo tempo que se conclui pela suficiência da matéria indiciária se repute indispensável a tomada de declarações adicionais dada a sua "capital importância para a descoberta da verdade material".


Podia o MP ter requerido, na audiência de julgamento, se achasse necessário, que se fizesse a leitura das peças processuais respeitantes às declarações das pessoas que faltaram ao julgamento, em conformidade como o disposto no art. 465º do C. P. Penal, em vez de solicitar o seu adiamento.


Improcede, assim, a alegação do Recorrente.


4. Sobre a omissão de diligências necessárias


Alega-se, também, ter havido "omissão de diligências necessárias"


Todavia, nesta 1ª Secção Criminal do Tribunal Supremo, o então PGA no seu douto parecer, considera que não só "o Magistrado do MP não requereu a realização de diligências que reputava necessárias" como também "as poderia ter especificado no pedido de abertura da instrução contraditória".


Temos que concordar com o Ilustre Representante do M P junto desta 1ª Secção Criminal, quer quanto à falta de requerimento quer quanto à completa ausência de especificação das diligências consideradas necessárias.


E, além disso, não podemos deixar passar sem reparo que o Ministério Público junto da 1ª instância tenha esperado pela audiência de julgamento para realizar diligências que bem podiam ter sido efectuadas antes: ou por sua iniciativa, usando dos poderes que lhe estavam conferidos na instrução preparatória, pelo art. 12º, § 1º, do Decreto-Lei nº 35007, de 13 de Outubro de 1945, ou a seu requerimento e com indicação discriminada, posteriormente, na instrução contraditória ao abrigo das faculdades concedidas, inter alia, pelo art. 35º daquele diploma legal e dos arts 328º e 340º do Código de Processo Penal.


A deficiente instrução do processo constatada pelo Ilustre Representante do M P neste Tribunal Supremo em parte terá sido consequência, directa ou indirecta, da inacção do próprio M. P.


Não procede, pois, a alegada omissão de realização de diligências necessárias.


5. Sobre o enquadramento jurídico dos actos praticados pelos Réus G... e H...


O Recorrente considera, nas suas alegações, que os Réus G... e H... cometeram o crime de "furto doméstico", não sendo, portanto, "encobridores do crime de abuso de confiança".


Por seu turno, nesta instância, o seu superior hierárquico junto desta 1ª Secção Criminal, opinou que a decisão que condenou como encobridores do crime de abuso de confiança foi "deveras aleatória".


Apreciando as posições dos dois Representantes do Ministério Público, impõe-se-nos salientar, em primeiro lugar, que o Digno Agente do MP na 1ª instância não apresenta elementos factuais, recolhidos dos autos e eventualmente dados como provados nem avança argumentos jurídicos para sustentar a sua tese de "furto doméstico" contra o enquadramento jurídico feito pelo Tribunal a quo.


Para a existência do crime furto doméstico torna-se, desde logo, necessária a verificação dos elementos típicos do crime de furto, nomeadamente: a) subtracção b) de coisa alheia móvel de certo valor; c) fraude, (cfr. art. 421º do Código Penal), além da qualidade especial dos seus autores prevista nos nºs 1º a 4º do art. 425º do CP. Ora, nem o Digno Agente do MP demonstrou que estes dois Réus tenham eles próprios "subtraído" o milho dos armazéns à sua responsabilidade, que o tenham feito de modo "fraudulento" e que fossem empregados do ofendido.


Improcede, por isso, a alegação de que deveriam ter sido condenados por furto doméstico.


Quanto ao parecer do então PGA, há a dizer que o sentido de sua asserção não é unívoco, além de que dizer-se apenas que a condenação foi "deveras aleatória" é, salvo o devido respeito, mera adjectivação que, convenhamos, por si só não chega para mudar a qualificação jurídica elaborada no Tribunal recorrido.


Por um lado, pode dela extrair-se a ilação de que se acha que os Réus deviam ser condenados, não como meros "encobridores" do crime de abuso de confiança, mas como verdadeiros "autores" ou "cúmplices" daquele mesmo crime

Mas, por outro lado, também se pode concluir que, afinal, o seu entendimento é o de que os Réus simplesmente não deveriam ter sido condenados por não terem praticado qualquer infracção.


6- Sobre as penas aplicadas aos Réus que foram condenados



O Digno Agente do MP junto do Tribunal a quo acha que os Réus deveriam ser condenados em "nunca menos de 4 anos de prisão maior", "atento o grau de culpabilidade" dos mesmos.


Confrontamo-nos, de novo, com uma clara falta de apresentação de elementos e de argumentos que possam não só suportar o que se alega, mas também sustentar uma valoração diferente da que fez o colégio de juízes que deliberou na 1ª instância. Na verdade, é manifestamente insuficiente alegar apenas que as penas "não se encontram equilibradamente atribuídas" para concluir, sem mais, que deviam ter sido outras, e mais graves, as penas.


Exigia-se a demonstração cabal do desequilíbrio que se alega.


Por outro lado, o que se pode mudar, acrescentar ou diminuir às penas aplicadas se a fundamentação no tocante à culpa dos Réus consiste, apenas, em fazer apelo a uma atenção "ao grau de culpabilidade" destes?


Era exigível ao Recorrente que trouxesse dados indispensáveis e descrevesse circunstâncias agravantes com incidência especial na culpa dos arguidos que permitissem, a partir daí, avaliar o "grau de culpabilidade" dos Réus de uma forma diferente daquela que foi feita pelo Tribunal a quo.


Não foi isso que o Ministério Publico fez na 1ª instância.


Em todo o caso, a propósito das penas em que foram condenados aqueles Réus, o então PGA junto desta 1ª Secção Criminal deu a opinião de que não se vislumbram na sentença os fundamentos que permitiram o uso da atenuação extraordinária da pena, chegando mesmo a observar que os Mmºs Juízes invocaram mal o nº 1º do art. 91º do Código Penal, pois este preceito não faculta o poder de se atenuar extraordinariamente as penas.


Façamos um aparte para esclarecer que não terá sido todo o colégio de juízes quem invocou mal o nº 1º do art. 91 do CP, mas sim o Mmº Juiz que presidiu ao julgamento, pois a ele competia a aplicação do Direito, já que aos "juízes eleitos" que compunham o tribunal a quo só era permitido intervir na decisão da matéria de facto.


Por outro lado, estamos convencidos que a menção do art. 91º do C. Penal terá sido feita, muito provavelmente, por mero lapso e não por ignorância. Ter-se-á querido invocar o art. 94 do C. Penal, mas escreveu-se art. 91º, como frequentemente acontece.


No entanto, assiste razão ao Ilustre Representante do Ministério Público nesta instância ao considerar que não se vislumbram na sentença os fundamentos que permitiram a atenuação extraordinária da pena. Com efeito, a sentença apenas faz referência ao "uso da faculdade de atenuação extraordinária". Não especificando quaisquer circunstâncias atenuantes de especial valor.


Ora, só a verificação de um circunstancialismo atenuativo de especial valor pode justificar a atenuação da pena, nos termos do art. 94º do Código Penal.


É jurisprudência assente que a substituição de penas mais graves por outras mais leves é uma faculdade excepcionalmente concedida pela lei e não pode ser operada discricionariamente: só se deve utilizar a atenuação extraordinária em presença de circunstâncias que se revistam de um forte valor atenuativo.


No caso em apreço, na altura em que a sentença foi proferida, a pena abstracta aplicável ao crime pelo qual foram os Réus condenados era a do nº 5º do art. 421º do Código Penal, ou seja, 8 a 12 anos de prisão maior. Contudo, a pena concretamente aplicada pelo Tribunal a quo foi, nuns casos, a de 2 anos de prisão e multa de 2 meses.


Tem, pois, razão o Ilustre Representante do Ministério Público nesta instância, a sentença violou o art. 84º do Código Penal.


Tal violação constitui nulidade de sentença nos termos do art. 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil por força do § único do art. 1º do Código de Processo Penal e deverá dar lugar à respectiva anulação e à baixa dos autos à 1ª instância, para que seja substituída por outra sentença que satisfizeça os requisitos legais e respeite as disposições pertinentes à medida das penas e à sua atenuação.


Sucede, contudo, que a pena geral aplicável ao crime cuja prática foi dada como provada actualmente não é a do nº 5º do art. 421º do Código Penal.


Efectivamente, a Lei nº 5/99, de 2 de Fevereiro, veio alterar os valores determinativos das molduras penais de diversos crimes, incluindo os de abuso de confiança. Assim, hoje, a pena abstracta aplicável aos crimes de abuso de confiança p. e p. pelos Artºs 453º e 421º do Código Penal, quando o valor da coisa se situe entre 10.000.000,00MT e 100.000.000,00MT, é a do nº 4 do art. 421 do C. Penal, ou seja, prisão maior de 2 a 8 anos.


Da alteração verificada beneficiam os Réus ao abrigo da excepção 2ª do art. 6º do C. Penal que permite a aplicação retroactiva da pena mais leve.


Sendo assim, a medida das penas concretas aplicadas pelo Tribunal a quo está, agora, dentro dos limites máximo e mínimo da pena abstracta actual, independentemente do uso da faculdade de atenuação extraordinária. É, então, praticamente dispensável a anulação da sentença e a baixa dos autos àquele Tribunal para efeitos de alteração da fundamentação da aplicação das penas, para invocar já não o uso da atenuação extraordinária, mas apenas o regime geral de atenuação.


Devemos, pois, é dar como sanada a nulidade verificada.



7- Sobre a absolvição dos Réus I..., J... e K...

O Recorrente afirma nas suas alegações que "existem provas bastantes nos autos da prática dos factos pelos Réus I e seus dois filhos integrando a sua conduta o lícito penal do art. 425º, nº 3º e 421º, nºs 4º e 5º, todos do Código Penal".


Os Réus contra-alegam que "não existe matéria condenatória", "está patente a sua inocência", "não desviaram qualquer milho" e que, por isso, a sentença não é passível de qualquer censura quanto à absolvição.


Nesta instância, o então Representante do Ministério Público limita-se a constatar que os "Réus absolvidos rejeitam a posição do Agente do Ministério Público argumentando de forma incisiva e mantendo a sua posição de inocentes"


Quanto à sentença recorrida, nela o Juiz a quo dá como fundamento da absolvição dos Réus a "falta de elementos de facto nos autos".


Oferece-se-nos observar, antes de mais, que o Recorrente ao cumprir o seu ónus de alegar, novamente nos traz conclusões, mas não elabora as suas premissas. Quer dizer, conclui que "há provas de factos" que classifica como "ilícito penal" (sic), mas não nos especifica quais são esses "factos" nem indica quais são as "provas", como lhe competia, para rebater a posição dos Juízes que, nos mesmos autos, não encontraram tais factos e as provas dos mesmos.


Também nos é dado o ensejo de notar que o então PGA junto desta 1ª Secção Criminal, não assumiu uma posição clara no seu douto parecer acerca da absolvição dos Réus e da motivação feita pelo Tribunal a quo. Isto é, fica-se sem ter a certeza se concorda ou discorda da sentença. Não se sabe se sufraga ou repudia a conclusão do seu subordinado da 1ª instância. E não se descortina, sem ambiguidade, se ao referir que "os Réus argumentaram de forma incisiva e mantiveram a sua posição de inocentes" quer com isso significar que aceita os argumentos e a posição destes e se, consequentemente, subscreve a fundamentação da sentença que os absolveu.


O que se imputou ao Réu I... e demais Réus absolvidos foi o "desvio" de 270 sacos de milho do PMA que deveriam ter sido transportados para Cuamba, Província do Niassa. Os Réus, no entanto, desde o início têm refutado, nos autos, qualquer participação em tal "desvio".


Para o efeito, contestaram dizendo que, dos 270 sacos, 158 sacos foram objecto das Guias do PMA nº 22427, do ICM 000673, da SOCOTEC nº 079769, 158 sacos foram transportados num camião com a chapa de matrícula MNB-15-30. Os condutores de tais camiões eram L... e M... que não faziam parte dos quadros da empresa de N...


Consta dos autos que foi o Réu F... quem se apresentou ao fiel de armazém da SOCOTEC o Réu H..., como tendo vindo da parte do Réu I..., " agindo manhosamente" enganando o H e "em prejuízo do Sr. O... e em seu benefício pessoal". Esta versão foi várias vezes produzida, inclusive no julgamento (fls. 275, 327 e 442). Não foi confrontada com outra que lhe fosse contrária, nomeadamente por parte do Réu F ou pelo MP.


Já constava do relatório da Polícia de Investigação Criminal, a fls. 212º vº, que "quanto ao arguido I..., durante a instrução (preparatória) apurou-se não existir elementos probatórios bastante sólidos para ser responsabilizado pelo desvio do destino legal" do milho.


As viaturas não eram propriedade dos Réus absolvidos, conforme se alcança da informação prestada pelo Instituto Nacional de Viação (fls. 340). Não há indicação de que estivessem alugadas ou, a qualquer outro título, ao Serviço dos Réus absolvidos.

Em face da presença destes dados e da ausência de outros, o colégio de Juízes a quo deliberou absolver aqueles Réus "por falta de elementos de matéria de facto nos autos"


Como confirmaria o então PGA junto desta 1.ª Secção Criminal no seu douto parecer, "é por demais patente a insegurança dos elementos probatórios produzidos pela acusação em relação aos Réus absolvidos" (fls. 520).

Na nossa opinião, o Tribunal a quo agiu prudentemente, como se recomenda em situação de dúvida, optando por absolver aqueles Réus.


Não procede, por isso, a alegação do Recorrente segundo a qual existiam "provas bastantes nos autos" para os condenar.


Analisadas as alegações do Recorrente e feito o confronto quer com as contra-alegações dos Réus absolvidos quer com a sentença recorrida e sanada a nulidade atrás citada, não descortinamos que hajam sido arguidas outras nulidades que pudessem pôr em causa a legalidade e a validade do julgamento que ali se realizou e/ou a alteração substancial da sentença proferida.


Devem, pois, considerar-se improcedentes as alegações do Recorrente e o pedido de anulação da sentença e do julgamento pelos fundamentos ali invocados.


Todavia, outras há que, embora não tendo sido identificadas nem arguidas por quem tinha legitimidade para o fazer, se impõe que a partir de agora passemos a conhecer oficiosamente, ao abrigo do art. 99º do Código do Processo Penal.


8 - Sobre a pronúncia de Imtiaz P...


O Mmº. Juiz a quo pronunciou, a fls. 377, P... pela prática do "crime de abuso de confiança p. e p. pelas disposições combinadas dos arts 453º e 421º, nº 5º, ambos do Código Penal".


Estava aquele cidadão para ser sujeito ao interrogatório a que alude o art. 256.º do Código de Processo Penal, quando o Digno Agente do Ministério Público alertou o Tribunal para o facto de contra Imtiaz P não ter sido dada querela pelo Ministério Público!


Em boa hora o fez: se não fosse aquela intervenção, muito provavelmente teria o cidadão sido julgado sem que todavia houvesse sido prèviamente acusado! Efectivamente, o nome de Imtiaz P não figura entre os que constam da acusação de fls. 225.


Não devemos deixar passar em exprimir a nossa mais séria censura ao facto de o Mmº Juiz a quo ter pronunciado quem não tinha sido prèviamente acusado. Também censuramos que o colectivo de Juízes tenha estado tão desatento, no seu todo, e se prestasse para julgar aquele cidadão.


Fica registado, igualmente, o insólito de nem mesmo o Ilustre Advogado, que assinou a Contestação de fls. 433, se haver dado conta de tão inédita situação até à audiência de julgamento!


Assim, no que respeita à pronúncia de P..., o despacho de fls. 377 do Mmº Juiz a quo está ferido de nulidade, afectando também os actos processuais seguintes.


De tal vício deve esta 1ª Secção Criminal conhecer, oficiosamente, como já se disse, por imposição do art. 99º do C. P. PENAL.


9- Sobre a pronúncia de C...


O Mmoº Juiz a quo pronunciou C... o qual foi, seguidamente, julgado e condenado à revelia.


Acontece que este Réu não foi notificado da acusação movida pelo Ministério Público, nem do despacho do Mmº Juiz que ordenou o cumprimento do art. 352 do C. P. PENAL e a abertura da instrução contraditória (fls. 263).


Consta, efectivamente, que foi tentada a sua notificação que, todavia, não chegou a ter lugar pelos motivos reportados na certidão negativa de fls. 282 dos autos. Não mais se localizou C..., pelo que jamais foi notificado nem da acusação, nem para efeitos do art. 352º, nem da abertura da instrução contraditória.


Não foi dada, por isso, a oportunidade de o Réu arguir nulidades, contraditar indícios, requerer diligências de prova e exercitar plenamente o direito de defesa que está consignado na Constituição e na lei, atingindo-se seriamente o princípio do contraditório que é essencial àquele direito de defesa e garantia crucial da vertente acusatória do nosso processo penal.


Deste modo, o despacho de pronúncia do Mmº Juiz a quo, na parte que diz respeito ao Réu C..., está ferido de nulidade, afectando consequentemente o seu julgamento à revelia e a sentença que o condenou.


Tal nulidade deve ser objecto de conhecimento oficioso nesta instância, ao abrigo do art. 99º do C. P. Penal.


10- Sobre a indemnização a favor do Réu I...


Ao absolver o Réu I... das incriminações pelas quais foi acusado, pronunciado e julgado, o Tribunal a quo deliberou que aquele transportador "tem haver do PMA (programa Mundial de Alimentação) pelos trabalhos prestados", em resumo, o "valor Total de 725.645.250,00MT"


Mas, embora na douta sentença se proceda à discriminação parcelada dos "trabalhos prestados", não se fez nela menção das disposições legais que permitiram ao tribunal a quo, por exemplo, aplicar uma "taxa de juros bancários à ordem de 25,6%" e outra relativa à inflação da moeda nacional de Janeiro de 1995 na ordem de 45%".


Ora, como se sabe, a sentença que "não especifique os fundamentos (…) de direito que justificam a decisão" é nula nos termos da alínea b), do nº 1 do art. 668º do Código P. Civil aplicável por força do § único do art. 1º do Código de Processo Penal.


Ao decretar a indemnização a favor do Réu I..., o Tribunal terá, eventualmente, entendido ser a mesma admissível nos termos do art. 453º do Código de Processo Penal, o qual determina que "no caso de absolvição, se houver parte acusadora, o tribunal condená-lo-á na indemnização de perdas e danos ao réu, se julgar que houve dolo de ou culpa na acusação".


Sucede, porém, que nos autos a querela é pública, do Ministério Público, não havendo "parte acusadora" e na sentença não há qualquer referência à existência de "dolo ou culpa na acusação"


Portanto, o PMA - Programa Mundial de Alimentação não devia ter sido condenado neste processo a pagar qualquer indemnização por não ser "parte acusadora", uma vez que embora seja o ofendido nos autos, não se constitui assistente no processo e não proferiu uma acusação sua.


Ao condenar o PMA em indemnização a favor do Réu I..., o Tribunal a quo conheceu de uma questão de que não podia conhecer, dando lugar à ocorrência da nulidade de sentença prevista na alínea d) do nº 1 do -art. 668º do C. P. Civil, aplicável por força do disposto no § único do art. 1º do C. P. Penal.


Tal nulidade deve ser objecto de conhecimento oficioso nesta 1ª Secção Criminal, ao abrigo do art. 99º do C. P. Penal.


Nestes termos, e nos das disposições conjugadas dos arts 98º do C. P. Penal e 201º, nº 2, e 668º do C. P. Civil, aplicáveis por força do disposto no § único do art. 1º do C. P. Penal, os Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo, na 1ª Secção Criminal,


-Dão como improcedente as alegações do Digno Agente do Ministério Público junto do Tribunal a quo, negando provimento ao recurso,

- confirmam a sentença recorrida no que respeita à condenação de

- A...,

- B...,

- D...,

- F...,

- G...

- H...


Nas penas de prisão, multas, custas e indemnizações fixadas naquela sentença,

- Confirma a sentença recorrida quanto a absolvição a

- I...

- J...

- K...

- Anulam o despacho do Mmº Juiz a quo constante de fls. 377 no que respeita à pronúncia de P,

- Anulam aquele mesmo despacho, bem como os actos subsequentes, no concernente à pronúncia, julgamento e condenação do Réu C e ordenam a separação de culpas relativamente a este Réu e que se abra Vista ao Ministério Público junto da 1ª instância para promover o que houver por conveniente;

- Anulam a sentença recorrida no referente à indemnização arbitrada a favor de I e à correlativa condenação do PMA – Programa Mundial de Alimentação (art. 453º do C. P. PENAL, art. 668º, nº 1, alínea d) C. P. CIVIL, aplicável por força do § único do art. 1º do C. P. PENAL).


Os Réus condenados em penas de prisão recolham à cadeia para cumprimento das respectivas penas, devendo para o efeito ser passados os competentes mandatos.



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Maputo, 21 de Setembro de 2001

Ass: José Norberto Carrilho e João Luis Victorino