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Processo n.º 151/98-C em relacao a Prisão preventiva (Processo n.º 151/98-C) [1999] MZTS 1 (26 March 1999)

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Processo n.º 151/98-C


Prisão preventiva

Notificação da acusação

Princípio do contraditório

Intérprete

Nulidades processuais

Interrogatório de arguido-preso

Instrução contraditória




Acórdão de 26 de Março de 1999


Sumário:


I. Quaisquer que sejam as circunstâncias em que se verifique, só é válida a prisão fora de flagrante delito desde que, achando-se reunidos os requisitos substanciais do art.

291º, seja levada a efeito mediante ordem por escrito (contendo os elementos referidos no art. 295º), assinada pelo juíz, pelo agente do Ministério Público ou por qualquer das autoridades de polícia de investigação criminal indicadas no art. 293º, todos do C. P. Penal;

II. Deduzida a acusação em processo penal, deve o juíz mandar notificá-la aos arguidos ou seus advogados nos prazos fixados no art. 352º. A partir da data da notificação, os autos serão facultados para exame aos representantes da defesa, no prazo a que se refere o § 1º do mesmo preceito legal. Só após o decurso deste prazo o juíz proferirá despacho, recebendo ou rejeitando a acusação ou ordenando a instrução contraditória, como no caso couber (art. 353º, todas as disposições do C. P. Penal);

III. Nesta fase do processo, a realização de diligências complementares de prova requeridas pelo Ministério Público, sem que os arguidos tenham sido notificados da acusação, constitui flagrante violação do princípio do contraditório e coarctação do direito de defesa;

IV. A falta de nomeação de intérprete idóneo ao réu, quando este não fale nem compreenda português, acarreta a nulidade do acto, nos termos do nº 3 do art. 98º do C. P. Penal. Essa nulidade deve, porém, considerar-se sanada, por força do § 4º da mesma disposição, se em momento posterior, já com auxílio de intérprete, as suas declarações forem por ele ratificadas;

V. É nulo o interrogatório ao arguido-preso feito sem a assistência de advogado ou defensor oficioso (art. 98º nº 4º, do C. P. Penal). A nulidade só ficará sanada se for posteriormente nomeado ou constituído defensor e este não a arguir no prazo de cinco dias, a contar da junção da procuração ou da notificação da nomeação oficiosa (§ 5º do art. 98º do C. P. Penal);

VI. Toda a instrução que tiver sido precedida de acusação pública, é necessariamente contraditória e presidida pelo juíz. Devem, pois, considerar-se juridicamente inexistentes os meios probatórios carreados para o processo que, no decurso desta fase, tenham sido obtidos por métodos inquisitórios e por outra autoridade que não a judicial;

VII. Finda a instrução contraditória em processo de querela, e antes de os autos serem continuados com vista ao Ministério Público para manter ou modificar a sua acusação, deve ser notificado o arguido para, no prazo de cinco dias, dizer o que se lhe oferecer (arts. 335º e 363º do C. P. Penal;

VIII. É nulo, por força das disposições conjugadas dos arts. 668º, nº 1, alínea d), e 666º, nº 3, do C. P. Civil – aplicável subsidiariamente ao processo penal de harmonia com o estabelecido no § único do art. 1º do C. P. Penal – o despacho de pronúncia no qual o juíz deixe de apreciar questões de que devia tomar conhecimento.


Acórdão

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal Supremo:


Na 7ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo foram pronunciados:


1. A..., casado, de 34 anos, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República da África do Suk, filho de B... e de C..., natural de Durban e residente, antes de preso, em Farma Plot 80, Knopjeslaagte Centurion – Pretoria;


2. D..., ou E..., também conhecido por F..., solteiro, nascido em 1975, informador da Polícia e da Contra-Inteligência sul-africanas, filho de G... e de H..., natural de Morrumbene e residente há dez anos na África do Sul (sendo portador do cartão de identidade sul-africano com o n.º 7506175871085);


3. I..., casado, de 43 anos, transportador privado, filho de J... e de K... natural da Moamba e residente, à data da prisão, na R. Honório Barreto, n.º 8, 2º andar, flat 4, Bairro de Chamanculo, em Maputo;


4. L..., de 37 anos, agente da PRM, filho de M... e de N..., natural da Maganja da Costa e residente na Av. do Trabalho, n.º 54, 3º andar, flat 7, em Maputo;


5. O..., solteiro, de 35 anos, técnico de Recursos Humanos, filho de P... e de Q..., natural de Massinga e residente na Av. Eduardo Mondlane, n.º 2221, 4º andar, em Maputo;


6. R..., solteiro, de 38 anos, militar, filho de S... e de T..., natural de Namacurra e residente na R. da Esperança, n.º 353, Bairro do Aeroporto “A”, em Maputo; e


7. U..., solteiro, de 25 anos, funcionário do SISE, filho de V... e de X..., natural de Pemba e residente no Bairro de Laulane, quarteirão 7, em Maputo,


como co-autores materiais, e em acumulação, dos crimes de tráfico de armas proibidas – previsto e punido pelo art. 253º do C. Penal –, associação de malfeitores – previsto e prevenido pelo art. 263º n.º 1 do mesmo Código –, e (somente em relação aos co-réus (A... e D...) espionagem – previsto e punido pelo art. 10, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 19/91, de 16 de Agosto –, concorrendo as agravantes 1ª (premeditação), 4ª (meio de realizar outro crime) e 10ª (várias pessoas), todas do art. 34º do Código já referido.


São-lhes imputados os seguintes factos:


Em data e mês imprecisos do ano de 1992, trabalhando como transportador de mercadorias da RSA para Moçambique, o réu I... iniciou uma longa actividade de tráfico de armas de fogo do nosso para o país vizinho. Para o efeito, viajava duas a três vezes por mês para a RSA, levando consigo entre três a dez armas de guerra de tipo AKM e pistolas Makarov, respectivamente;


As armas eram depositadas no chassis da viatura em que viajava, devidamente preparado para as fazer passar em ambas as fronteiras com a maior segurança;


Uma vez com o armamento na RSA, o réu I... vendia-o ilicitamente a um tal Zulu, cidadão sul-africano residente em Hostel, Soweto, Johannesburg;


O preço estabelecido era de 400,00 Rands por cada pistola e de 1.000,00 Rands por AKM;


O tráfico de armas foi correndo, até que o réu I..., em data imprecisa de 1993, sofreu um acidente de viação do qual resultou a destruição total do veículo adaptado para aquela actividade ilícita;


Este facto determinou que o citado réu tivesse ficado momentaneamente impedido de prosseguir com o negócio. Algum tempo depois conseguiu, porém, que o seu cliente Zulu lhe desse de empréstimo 8.000,00 Rands, valor que utilizou na compra de uma nova carrinha de caixa aberta, de marca Colt, o que lhe permitiu retomar o tráfico de armas de Moçambique para a RSA;


No prosseguimento dessa actividade viria, em 1996, a ser detido na fronteira da Suazilândia com a RSA, quando transportava 5 espingardas AKM e duas pistolas Makarov;


Desconhece-se a quantidade de armas vendidas pelo I na RSA;


O certo é que, para levar a efeito essas transacções, este réu contou sempre com os serviços dos co-réus R..., U..., O... e L..., todos integrados nas Forças de Defesa e Segurança de Moçambique;


Em circunstâncias pouco claras, todos estes co-réus se associaram ao I... e passaram a fornecer-lhe o armamento que ele ia revender na terra do Rand;


Os preços praticados eram de 1.000.000,00MT por cada Makarov e de 1.500.000,00MT por AKM;


Já em 1991 o I... travara conhecimento, através de um filho e um irmão seus residentes no território vizinho, com o co-réu D..., de quem viria a tornar-se amigo pessoal;


Na altura, o D..., informado do negócio entre o I... e o atrás referido Zulu, interessou-se em obter também o fornecimento de armas;


Porém, este co-réu D... tinha duas faces, pois, ao mesmo tempo que adquiria armas ao I..., dava informações à Polícia e à Inteligência sul-africanas sobre os movimentos do seu fornecedor;


Por causa dessas informações, a vigilância policial na fronteira tornou-se mais rigorosa, e o I... viu-se de novo compelido a suspender a actividade ilícita que vinha desenvolvendo;


A 2 de Janeiro deste ano o D... veio a Maputo para tentar convencer o I... a reatar os fornecimentos, pois, segundo ele, havia três boers interessados em grandes quantidades de armamento e dispostos a pagar em dolares americanos;


Aceite a proposta, combinou-se um primeiro encontro, em Maputo, entre o fornecedor e um dos potenciais compradores, para o dia 28 do mesmo mês;


Foi assim que, na data aprazada, se estabeleceu o primeiro contacto pessoal entre os co-réus I... e A..., servindo o D... de intérprete;


Ficou assente que o A... viria pessoalmente levantar as armas e despachá-las de barco para a RSA;


De facto, algum tempo depois, A... e D... voltaram a Maputo, viajando desta vez de automóvel - um Nissan Sani 4x4, com a matrícula SMS618T – mas, como não tivessem encontrado o I..., rumaram até à província de Inhambane, acompanhados de um tal Y..., tio do D...;


O propósito desta viagem era o de localizar um outro eventual fornecedor de armas, conhecido do réu D.... Não conseguiram, porém, contactá-lo, por terem sido informados de que trabalhava agora na Assembleia da República, em Maputo;


Durante a viagem, o D... aproveitou para pedir ao tio que tentasse arranjar uma casa e um barco, a fim de guardar as armas e exportá-las depois para Portugal …;


De regresso a Maputo, e depois de um prévio contacto telefónico, deslocaram-se a casa do I..., a fim de procederem ao primeiro levantamento de mercadoria. O D... foi à frente, de taxi, seguido à distância pelo A no seu automóvel, acompanhado pelo Y...;


Quando entrou, sozinho, em casa do I..., o D... foi surpreendido por agentes da Polícia no momento em que recebia duas espingardas AKM , cinco pistolas Makarov e uma submetralhadora PPSh;


Vendo-se nas mãos da Polícia, o D... conseguiu dar o sinal antecipadamente acordado com o McBride, permitindo que este se pusesse em fuga do local;


Já em Abril de 1997 o A... havia comprado grandes quantidades de armamento na RSA, sem, contudo, esclarecer para que fim se destinava;


Há ainda evidências de ser um potencial fornecedor de armamento a sindicatos ligados ao crime organizado, dentro e for a do seu país;


Os autos mostram ainda que o réu A... veio a Moçambique à revelia do seu Governo, e por sua conta e risco, para investigar o tráfico de armas a partir de Moçambique, tráfico que envolve altos quadros das Forças de Defesa e Segurança do nosso país, com o objectivo de anunciar o resultado das suas investigações na sessão do Conselho de Segurança da SADC, realizada no dia 23 de Março último;


Não deu a conhecer esta sua actividade às comissões bilaterais que trabalham conjuntamente na área do combate ao crime;


Agiu, pois, com o objectivo de, secretamente, obter informações sobre Moçambique, ao mesmo tempo que desenvolvia a sua actividade de compra ilícita de armas;


Por isso se pôs em fuga precipitada, apercebendo-se das graves consequências do seu envolvimento no tráfico de armas de Moçambique para o seu país e das informações secretas que pretendia obter;


Foi, todavia, detido antes de atravessar a fronteira de Ressano Garcia.


Contra a pronúncia assim deduzida interpôs recurso de agravo o réu A... Nas respectivas alegações refere, em síntese:


Nulidades de instrução preparatória arguidas antes da notificação

da acusação, não apreciadas no despacho de pronúncia:


Ainda antes de ter sido notificado da acusação teve o ensejo de arguir nulidades de actos praticados durante a instrução preparatória e de denunciar situações de violação dos seus direitos, mas o despacho de pronúncia é completamente omisso em relação a elas, violando desse modo o disposto nos arts. 354º e 366º, nº 6, do C. P. Penal;


Nulidades e questões suscitadas pela defesa depois da notificação da acusação,

não apreciadas no despacho de pronúncia:


Na altura em que foi notificado do despacho de recebimento da acusação e de abertura da instrução contraditória, já o juíz tinha marcado diligências para os dias 29 e 30 de Abril, pelo que ficou impossibilitado de examinar o processo e preparar a sua participação na instrução contraditória, ao abrigo do direito que lhe é conferido no parágrafo 1º do art. 352º do C. P. Penal;


O referido despacho foi objecto de recurso, e este admitido, tendo a defesa apresentado as respectivas alegações, que estão juntas aos autos. A decisão das questões suscitadas por este recurso prejudicaria a continuação da instrução contraditória. O despacho de pronúncia é omisso em relação a todas estas questões relacionadas com a violação dos arts. 352º, 353º e 354º do C. P. Penal;


O juíz não sustentou nem reparou o agravo, pelo que o Tribunal Supremo deverá conhecer de todas as questões suscitadas nas alegações do recurso interposto contra a decisão que recebeu provisoriamente a acusação e ordenou a abertura da instrução contraditória;


De entre as referidas questões suscitadas destacam-se: a falta de nomeação de intérprete, quando o réu foi ouvido perante o juíz da instrução, no dia 13 de Março de 1998; a inexistência de corpo de delito, por falta de auto de apreensão das armas que, alegadamente, I... teria em sua casa no dia 9 de Março de 1998, para vender ao D...; o facto de os réus D... e I... terem sido ouvidos em perguntas sem a presença de advogado; a circunstância de as simples confissões dos arguidos I... e D... não valerem como meio de prova; o facto de este ter prestado depoimentos contraditórios ao longo da instrução e não ter sido acareado com os co-réus I... e A...; o facto de D... usar documento falso e ter falsa identidade, o que desacredita os seus depoimentos e deveria dar origem a um processo crime; o facto de não terem sido apreciadas as provas constantes dos documentos que a defesa juntou aos autos no dia 11 de Março de 1998;


Nulidades da instrução contraditória que não foram apreciadas

no despacho de pronúncia:


A instrução contraditória tem, entre outras, a finalidade de realizar as diligências requeridas pelo arguido, destinadas a ilidir ou enfraquecer a prova indiciária da acusação e a preparar a defesa (art. 327º do C. P. Penal). O arguido só pode exercer esse seu direito depois de ser notificado da acusação e de examinar o processo, conforme vem estabelecido no § 1º do art. 352º do C. P. Penal. Consequentemente, o juiz só deveria ter-se pronunciado sobre o recebimento ou rejeição da acusação, ou sobre a abertura da instrução contraditória, depois de decorrido o prazo concedido à defesa para examinar o processo;


Depois de examinar o processo, o recorrente arguiu nulidades, requereu a junção de documentos e pediu a sua libertação. A partir desse momento, até ser notificado de uma segunda acusação, nunca mais o seu advogado pôde exercer o direito de consulta do processo na secretaria, tal como está estabelecido no art. 70º do C. P. Penal. Reclamou por escrito por diversas vezes, exigindo respostas às questões apresentadas e pedindo que fosse respeitado o seu estatuto de arguido, mas nunca obteve resposta;


Nulidades e questões suscitadas após a notificação da segunda acusação,

que não foram conhecidas no despacho de pronúncia:


A segunda acusação continha novos arguidos e a imputação de novos crimes. A defesa do recorrente foi surpreendida, já que, durante a instrução contraditória, nenhuma diligência havia sido realizada com o seu conhecimento que justificasse esses acréscimos e alterações. Depois de notificado, recorreu do despacho que sobre a mesma recaíu, chamando a atenção para a gravidade das questões que iria suscitar nas alegações do recurso. Este foi admitido, mas o respectivo despacho de admissão só lhe foi notificado depois de proferida a pronúncia, que não tomou em consideração o conteúdo das suas alegações;


O despacho de pronúncia não conheceu da nulidade da decisão de apensar ao processo nº 66/98, com violação dos princípios gerais da instrução contraditória – nomeadamente, o de que esta é presidida pelo juíz e em forma contraditória -, o aditamento nº 860/98 e os processos nºs 735/PRC e 792/PRC/98;


Os arts. 335º e 363º do C. P. Penal estabelecem inequivocamente a obrigatoriedade de ouvir o réu, antes do Ministério Público, para dizer o que lhe oferecer, depois de encerrada a instrução contraditória e antes da pronúncia. Ao recorrente não foi dada a oportunidade de exercer esse direito.


As alegações terminam, pedindo:


a) que o despacho de pronúncia seja declarado nulo e de nenhum efeito, nos termos do art. 668º, n.º 1, alínea d), do C. P. Civil, aplicável aos despachos por força do n.º 3 do art. 666º do mesmo Código, disposições aplicáveis por força do disposto no § único do art. 1º do C. P. Penal, porque não conheceu de questões de que deveria tomar conhecimento;


b) que as nulidades arguidas antes e depois da abertura da instrução contraditória sejam julgadas procedentes, e os autos devolvidos ao Ministério Público para que tais nulidades possam ser sanadas e a instrução preparatória prosseguir com respeito pelos princípios da legalidade, isenção, imparcialidade e objectividade;


c) que os recursos de agravo interpostos ao longo da instrução sejam julgados procedentes e as acusações deduzidas pelo Ministério Público rejeitadas, apreciando-se todas as questões suscitadas pelo recorrente nos vários documentos e requerimentos que juntou ao processo;


d) que sejam apuradas e exigidas responsabilidades aos magistrados e agentes da polícia que denegaram justiça e se recusaram a cumprir a lei na instrução preparatória e na instrução contraditória;


e) que o recorrente seja restituído à liberdade e lhe sejam devolvidos todos os seus bens apreendidos nos autos.


  • Com o do despacho de pronúncia subiram igualmente os recursos interpostos pelo réu A... de decisões anteriores àquele.



O primeiro, contra o despacho que recebeu a acusação provisória e declarou aberta a instrução contraditória (I volume, fls. 183). O recorrente pede que, em reparação do agravo, se dê sem efeito o despacho recorrido e que o juiz se pronuncie sobre a rejeição, recebimento ou abertura da instrução contraditória, somente depois de decorrido o prazo de cinco dias para exame, fixado no art. 352º do C. P. Penal. Se tal não for considerado, que o despacho seja revogado em sede de recurso.



O segundo recurso, contra o despacho que mandou notificar a acusação definitiva, nos termos do art. 352º do C. P. Penal (III volume, fls. 697). São, em resumo, os seguintes os fundamentos invocados: a) não haver justificação, nos resultados da instrução contraditória, para o surgimento de uma nova acusação (definitiva); b) não poderem os processos que foram apensos aos autos e que contêm diligências realizadas pela PIC, sem o conhecimento do tribunal, já depois de declarada aberta a instrução contraditória, servir de base à alteração da acusação; c) dever esta acusação ser declarada nula e ignorada, não podendo servir de base à realização de novas diligências e ao prosseguimento da instrução contraditória, que foi declarada encerrada; d) dever o tribunal pronunciar ou despronunciar, apenas tendo em consideração a primeira acusação (deduzida como provisória), que foi recebida e serviu de base à instrução contraditória.



O Ministério Público não contra-minutou em nenhum dos mencionados recursos. Nesta instância, porém, o Exmo. Procurador-Geral adjunto emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso principal, declarando-se nulo e de nenhum efeito o despacho de pronúncia, ao abrigo do que se dispõe nos arts. 668º, n.º 1, alínea d), e 666º, n.º 3, do C. P. Civil, por força do estabelecido no art. 1º do C. P. Penal, “… em virtude de o juíz “a quo” não ter conhecido das questões que devia conhecer, como ficou demonstrado à saciedade nas alegações do ilustre patrono do recorrente”.



Tudo visto e ponderado, cumpre apreciar e decidir.


Uma vez que os fundamentos do recurso interposto contra o despacho de pronúncia, explanados nas respectivas alegações (IV volume, fls. 893 e segts.), abrangem todo o conjunto de questões suscitadas, quer nas minutas dos recursos intercalares (I volume, fls. 184 e segts., e III volume, fls. 765 e segts.), quer nos requerimentos em que se arguiram nulidades (I volume, fls. 157 e segts. e 198 e segts., e III volume, fls. 701 e segts.), pronunciar-nos-emos detalhadamente sobre os primeiros, pela ordem em que são colocados, concluindo pela decisão quanto ao mérito ou demérito da causa.

Assim,

Quanto às nulidades arguidas antes da notificação da acusação (provisória):



Conforme a respectiva certidão, que se mostra junta aos autos a fls. 190 v. (I volume), o recorrente foi notificado da acusação provisória, na pessoa do seu advogado, em 28 de Abril de 1998. Nessa altura, já havia arguido, por requerimento que dera entrada na secretaria do tribunal em 22 de Abril, diversas nulidades e irregularidades processuais ocorridas durante a instrução preparatória, nomeadamente:



a) o facto de, no decurso do interrogatório a que fora submetido no dia 10 de Abril, nas instalações da cadeia da Machava (ex-BO) e na presença do seu advogado, ter sido criada no recorrente a falsa expectativa de que, findo o acto, receberia a visita de seu pai, que o aguardava no exterior da sala. Conforme se veio a verificar após o interrogatório, o sr. A... (pai) encontrava-se naquele momento e àquela hora na sua residência na África do Sul. Essa falsa expectativa integra o conceito de dolosa persuasão, para efeitos do disposto no art. 261º do C.P.Penal, sendo, por isso, prática proibida;



b) o facto de, em violação do direito consagrado no art. 41 da Lei n.º 7/94, de 14 de Setembro, ter sido impedida pelas autoridades prisionais a visita e a conferência do advogado com o recorrente no dia 15 de Abril de 1998;



c) o facto de ter sido detido sem culpa formada no dia 9 de Março, em Ressano Garcia, sem que lhe tivesse sido entregue o duplicado do mandado de captura, nos termos do art. 296º, § 2º, do C. P. Penal, nem informado sobre os motivos da detenção;



d) o facto de, ao arrepio dos preceitos legais pertinentes e dos princípios adoptados pela Assembleia Geral das Nações Unidas para a Protecção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, o recorrente ter sido sistematicamente impedido de comunicar com o mundo exterior à cadeia, nomeadamente com os familiares mais próximos (esposa, pais, irmão e filhos).



De todas estas irregularidades, o Mmo. Juíz de Direito só se deteve, na primeira parte do seu despacho de pronúncia (III volume, págs. 747 e segts.), sobre a questão relativa ao mandado de captura, referindo, a dado passo: “… é evidente que na situação de fuga que se encontrava o réu e para o estrangeiro, havia necessariamente de se utilizar o mecanismo mais rápido e eficaz para evitar a sua saída do território, neste caso via telefónica, pois que sem se utilizar este meio o arguido teria saído do território nacional e consequentemente impune. Será que num caso como este era de deixar o arguido passar a fronteira enquanto lá não chegassem os mandados de captura que provavelmente seriam enviados pelos correios? Assinala-se desde já que no capítulo das prisões ou detenções, uma vez efectuada esta, dependendo das circunstâncias se dê cumprimento ao formalismo legal o que é que aconteceu no caso vertente”.



Se bem entendemos, o Mmo. Juíz admite que a circunstância da eventual fuga do arguido para o estrangeiro é justificação bastante para a prática de um acto ilegal, pelo menos na sua forma, porque expressamente afastado do espírito e da letra da lei que o regula. É o que se pode deduzir da sua afirmação segundo a qual o cumprimento do formalismo legal quando se efectua uma captura “depende das circunstâncias…”.



Ora, em face da lei positiva e do mais elementar bom senso, é evidente que esta posição não pode ser acolhida. O que está em causa, convém não esquecer, é um dos direitos fundamentais da pessoa humana, consagrado nas Constituições de quase todos os países (v., no nosso caso, o art. 98) e em várias convenções internacionais, algumas já ratificadas por Moçambique e adoptadas como direito interno: o direito à liberdade, strictu sensu. Daí que o legislador seja, geralmente, bastante rigoroso na prescrição das formalidades a que deve obedecer a detenção ou prisão de um indivíduo, sobretudo quando esta se verifica fora de flagrante delito (v. arts. 286º e segts. do C. P. Penal, especialmente os arts. 291º e 293º). E não se duvide que a captura do recorrente teve lugar fora de flagrante delito, não obstante a conclusão em contrário do Mmo. Juíz da instrução, no seu despacho de “legalização” (I volume, fls. 34): ele não foi detido no momento em que o alegado facto punível se estava cometendo, nem resulta dos autos – mormente da informação de fls. 3 e segts. - que tenha sido perseguido logo após a perpretação de tal facto ou encontrado a seguir à sua prática com objectos ou sinais que mostrassem claramente que o cometera ou nele participara (v. art. 288º do C. P. Penal).



Pergunta o Mmo. Juíz se, num caso como este, era de deixar o arguido passar a fronteira enquanto lá não chegassem os mandados de captura que provavelmente seriam enviados pelos Correios…



Obviamente que a resposta a esta interrogação só pode ser negativa. A execução das ordens de captura está, aliás, regulamentada no art. 296º, por remissão do art. 298º, ambos do C. P. Penal. Mas a verdade é que a lei impõe como requisito formal da prisão fora de flagrante delito que esta seja levada a efeito mediante ordem por escrito de certas autoridades (cfr. o art. 293º do diploma em referência, na redacção actualizada pela Lei n.º 2/93, de 24 de Junho) e, nos dias de hoje, existem meios técnicos ao alcance de todos, capazes de enviar em poucos minutos documentos escritos para qualquer ponto do globo onde esses meios técnicos estejam disponíveis. Estamos em crer que no posto fronteiriço de Ressano Garcia há uma máquina de fax ou de telex a funcionar. Na remota eventualidade de assim não suceder, dever-se-ia ter recorrido a outra solução, em harmonia com o que se acha estipulado na própria lei: ser a captura solicitada telefonicamente ao comandante do posto local da P. R. M., que mandaria emitir e assinaria a respectiva ordem por escrito, visto ser autoridade com poderes para tal, conforme determina o n.º 2º do § único do art. 6 da citada Lei n.º 2/93.



O resultado de não se haver procedido de nenhuma destas formas é o de não se mostrar identificada nos autos a entidade que efectivamente ordenou a detenção do arguido e, por consequência, não poder o juíz da instrução verificar se essa entidade estava revestida de autoridade de polícia de investigação criminal



Em suma, o Mmo. Juíz de Direito não só devia ter reconhecido a existência da irregularidade invocada, como o devia ter feito no despacho que fizesse recaír sobre o requerimento respectivo (v.g., o despacho de fls. 182, I volume), e não aguardar pela pronúncia. Mesmo que, eventualmente, viesse a considerar a mesma irregularidade sanada nos termos do art. 100º do C. P. Penal, o que sempre se mostraria discutível.



Quanto aos restantes pontos levantados no requerimento em referência, não se vislumbra dos autos que tivesse sido mandada averiguar a veracidade dos factos relatados, nem, como era dever do juíz, tomada qualquer posição sobre os mesmos no despacho de pronúncia, desrespeitando-se o estatuído no n.º 6 do art. 366º do C. P. Penal.



Quanto às nulidades e outras questões suscitadas depois da notificação da acusação (provisória):



No dia imediato àquele em que foi notificado do despacho que recebeu a acusação provisória e ordenou a abertura da instrução contraditória, o recorrente interpôs recurso de agravo contra este despacho (v. I volume, fls. 183 e segts.). Argumentou, em substância,



a) que o recebimento da acusação e a abertura da instrução contraditória foram decididos antes de decorrer o prazo de cinco dias, fixado no § 1º do art. 352º do C. P. Penal, para os advogados arguirem nulidades, sugerirem diligências, oferecerem documentos ou alegarem o que entenderem conveniente a bem da defesa;



b) que o art. 353º do C. P. Penal estabelece, claramente, que o despacho sobre o recebimento ou rejeição da acusação, ou sobre a abertura da instrução contraditória, só será proferido depois de decorrido o prazo indicado no art. 352º para os advogados examinarem o processo;



c) que o artigo 354º do mesmo Código estatui que o juíz, antes de apreciar a acusação, deverá conhecer das nulidades da instrução ou de actos praticados durante a instrução;



d) que, desde a notificação da acusação (até à data da interposição do recurso), o processo não esteve nunca disponível na secretaria para exame dos advogados, por causa das diligências marcadas para os dias 29 e 30 de Abril;



e) em conclusão, que o agravo deve ser reparado, dando-se sem efeito o despacho recorrido, e o juíz pronunciar-se sobre a rejeição, recebimento, ou abertura da instrução contraditória só depois de decorrido o prazo fixado no art. 352º do C. P. Penal, contado a partir da altura em que o processo estiver disponível para exame na secretaria. Se assim não for entendido, que o despacho seja revogado.



O Mmo. Juíz admitiu o recurso sem reparar o agravo, vindo a esclarecer, na primeira parte do despacho de pronúncia, que, “…verificando nada obstar ao requerido pelo Ministério Público, segundo a regra estabelecida no art. 329º do C. P. Penal, declarou aberta a instrução contraditória e ordenou a realização das diligências nela promovidas…” (III volume, fls. 749), assim tendo agido em conformidade com a lei.



Como é bom de ver, este esclarecimento é manifestamente insuficiente. Uma coisa é a legitimidade do Ministério Público para requerer a abertura da instrução contraditória com a finalidade de esclarecer e completar a prova indiciária da acusação (cfr. o n.º 2 do art. 1 da Lei n.º 9/92, de 6 de Maio, que em parte revogou o art. 327º do C. P. Penal), ou a enunciação taxativa das situações em que esse requerimento pode ser denegado (v. art. 329º do C. P. Penal), outra coisa, bem diferente, é a necessidade do respeito pelo princípio em que assenta aquela modalidade de instrução – o contraditório -, que os preceitos citados pelo recorrente impõem de forma lapidar (v. arts. 352º e 353º).



Por força destas disposições de lei, sempre que é proferida uma acusação em processo penal, deve o juíz mandar notificá-la aos arguidos e seus advogados nos prazos ali indicados. A partir da data da notificação, o processo deverá ser facultado para exame aos advogados dos arguidos que, no prazo de cinco dias, poderão agir conforme acharem mais conveniente a bem da defesa. Só após o decurso deste prazo o juíz proferirá o despacho de recebimento ou rejeição da acusação, ou ordenará a instrução contraditória, como no caso couber.



No despacho recorrido, o Mmo. Juíz violou claramente estes comandos normativos: recebeu desde logo a acusação provisória e declarou aberta a instrução contraditória sem que a defesa tivesse sido previamente notificada e lhe tivesse sido dada a oportunidade de examinar o processo. Resultado: quando essa notificação foi feita e o advogado do recorrente pretendeu exercer o direito conferido pelo § 1º do art. 352º, não o pôde fazer por, simultaneamente, estarem já a correr diligências de instrução contraditória requeridas pelo Ministério Público (v. I volume, despacho de fls. 182). Acresce que dar início a essas diligências sem proporcionar aos arguidos a possibilidade de a elas se oporem constitui, sem margem para dúvidas, um atentado ao princípio do contraditório ou, para ser mais preciso, uma subversão do sistema processual penal vigente, na medida em que se prolonga indevidamente o secretismo e a actuação de tipo inquisitório que caracterizam a fase anterior do processo, a chamada instrução preparatória.



Posteriormente ao recurso interposto contra o despacho de recebimento da acusação provisória, o réu A... veio de novo arguir nulidades nos termos que a seguir se resumem (I volume, fls. 198 e segts.):



a) não fala nem compreende a língua portuguesa; apesar disso, foi ouvido perante o juíz da instrução sem que lhe tenham nomeado intérprete (v. I volume, fls. 32 v. e segts.). A falta

de nomeação de intérprete constitui nulidade, nos termos do art. 98º, 3º, do C. P. Penal, implicando a nulidade do próprio acto e dos actos posteriores;



b) vem acusado da prática, em co-autoria, do crime de aquisição de armas proibidas, previsto no art. 253º do C. Penal; nos autos não existe qualquer prova de que alguém vendeu ou comprou armas; quando foi interceptado em Ressano Garcia, não lhe encontraram qualquer arma (v. lista de bens apreendidos, I volume, fls. 4 e 5); relativamente às armas que se diz terem sido encontradas em casa do co-réu Alexandre Uamba, não foi elaborado qualquer auto de apreensão, como seria exigível nos termos dos arts. 202º e 206º do C. P. Penal; a falta ou insuficiência do corpo de delito é uma nulidade absoluta, prevista no art. 98º, 1º, do C. P. Penal e não pode ser suprida na instrução contraditória – implica a nulidade de todo o processo;



c) consta dos autos que os co-réus D... e I... foram ouvidos em perguntas sem a presença de um advogado ou defensor oficioso, o que constitui outra nulidade, nos termos do art. 98º, 4º, do C. P. Penal.

Mais uma vez o Mmo. Juíz de Direito se absteve de tomar posição relativamente a cada uma destas invocadas nulidades. Na já mencionada primeira parte do despacho de pronúncia, e referindo-se aos interrogatórios a que o réu A... foi submetido durante a instrução, incorreu em manifesto equívoco ao responder que nunca aquele fora ouvido sem a presença de defensor oficioso (primeiro interrogatório) ou do advogado constituído (interrogatórios subsequentes)…



Na verdade, o que o recorrente veio alegar foi a ausência de intérprete idóneo aquando da audição pelo juíz da instrução criminal. E essa ausência é perfeitamente visível através do correspondente auto de perguntas (I volume, fls. 31 e segts.), no qual, aliás, o réu escreveu a seguinte anotação, no momento em que assinava: “I accept even though I do not understand Portuguese” (“aceito, embora não compreenda português”).



A falta de nomeação de intérprete idóneo ao réu, quando este não fale nem compreenda português, constitui, como se alega, a nulidade processual prevista no n.º 3 do art. 98º do C. P. Penal. No caso concreto entendemos, porém, dever considerar-se tal nulidade sanada, nos termos do § 4º da mesma disposição, visto que as declarações prestadas no primeiro interrogatório vieram a ser ratificadas em momento posterior pelo recorrente, já com o auxílio de intérprete.



Pelo contrário, a falta de nomeação de defensor oficioso dos réus D... e I..., quando interrogados na instrução preparatória, bem como a impossibilidade de estabelecer o adequado nexo causal entre as armas apreendidas e referidas como instrumentos do crime e os factos imputados a qualquer dos réus, por inexistência do necessário auto de apreensão (a que se refere o art. 206º do C. P. Penal) e de elementos indiciários suficientes sobre a origem daquelas, são nulidades processuais que, de modo nenhum, se podem considerar sanadas, porque foram arguidas em devido tempo e, a persistirem, poderão afectar a justa decisão da causa.



Quanto às nulidades da instrução contraditória:

Volta o recorrente a suscitar a questão da falta de cumprimento do disposto no art. 352º e seu § 1º antes de ser ordenada a abertura da instrução contraditória, bem como a impossibilidade de consulta do processo na secretaria depois de requerida a junção de documentos e de arguidas uma série de nulidades, sem que lograsse qualquer resposta. Isto, apesar das repetidas reclamações por escrito, em que exigiu uma tomada de posição face às questões apresentadas e pediu que fosse respeitado o seu estatuto de arguido.



Uma vez que estas questões já foram anteriormente apreciadas, tendo sido reconhecida a justeza das alegações do recorrente, não vemos necessidade – quanto mais não seja, por homenagem ao princípio da economia processual - de voltar a pronunciar-nos sobre as mesmas.



Quanto às nulidades suscitadas após a notificação da segunda acusação (definitiva):



  • Resulta inequivocamente dos autos que a prova indiciária sobre a qual se baseou o Ministério Público para, na acusação definitiva (III volume, fls. 679 e segts.), introduzir novos factos e novas incriminações foi, toda ela, recolhida na República da África do Sul, entre os dias 17 e 26 de Abril de 1998, pelo agente da PIC que estivera ligado à instrução preparatória do processo (v. II volume, fls. 467 e segts. E fls. 652). Os mesmos elementos viriam a ser considerados pelo Mmo. Juíz de Direito no despacho de pronúncia sobre o qual recai o presente recurso.



Na altura em que as diligências respectivas – levadas a efeito “… juntamente com a Polícia daquele país, baseada em Pretória …” e constituídas por “audições e recolha de provas documentais (…) sobre o tráfico ilegal de armas” (cfr. II volume, fls. 467) – tiveram lugar, já havia sido proferida a acusação provisória e requerida a abertura da instrução contraditória (v. I volume, fls. 145 e segts.). Esta, que é sempre presidida pelo juíz, como determina a lei processual em vigor (art. 330º do C. P. Penal), iniciou-se após o despacho exarado em 22 de Abril (I volume, fls. 151 e segt.).



Não se compreende, portanto, que a Polícia de Investigação Criminal – órgão auxiliar do Ministério Público, a quem se encontra funcional e metodologicamente subordinada – haja tomado a iniciativa de realizar as referidas diligências, numa fase em que se havia esgotado o seu poder de intervenção no processo e este tinha já sido submetido à jurisdição (aqui entendida no sentido estrito do termo, como actividade própria e exclusiva dos tribunais) e em que, por consequência, todo e qualquer acto de instrução teria de ser presidido pelo juíz da causa e efectuado sob forma contraditória.



São, assim, absolutamente legítimas as objecções colocadas pelo recorrente quanto à validade e eficácia jurídica dos elementos indiciários de prova constantes do “aditamento ao processo nº 860/98” (II volume, fls. 311 e segts.). Tais elementos, obtidos por métodos inquisitórios e por autoridade distinta do juíz, devem ter-se por juridicamente inexistentes, para efeitos processuais.



Por último, há ainda que dar razão ao recorrente quanto ao incumprimento do preceituado nos arts. 335º e 363º do C. P. Penal. Estas disposições estabelecem a obrigatoriedade de notificação do arguido, finda a instrução contraditória, para, no prazo de cinco dias (tratando-se, como no caso em apreço, de processo de querela), dizer o que se lhe oferecer, antes de os autos serem continuados com vista ao Ministério Público a fim de manter ou modificar a sua acusação. Mais uma vez, foi aqui ignorado o princípio do contraditório e menosprezados os legítimos interesses da defesa.


O despacho de pronúncia ora em apreciação é, como vimos, omisso relativamente à grande maioria das nulidades e irregularidades processuais arguidas, algumas das quais, a persistirem, afectariam em grau elevado a justa decisão da causa. O Mmo. Juíz deixou, assim, de apreciar questões de que deveria ter tomado conhecimento.



Nestes termos, dando provimento ao recurso e considerando as disposições conjugadas dos arts. 668º, n.º 1, alínea d), e 666º, nº 3, ambos do C. P. Civil, e § único do art. 1º do C. P. Penal, anulam o despacho de pronúncia e todo o processado até ao despacho de fls. 151 e segt. (I volume), inclusivé, devendo o Mmo. Juíz pronunciar-se sobre os requerimentos da defesa, designadamente sobre a invocada insuficiência do corpo de delito.



Todos os bens apreendidos e constantes dos termos de entrega de fls. 12, 13 e 15 (I volume), deverão ser restituídos aos legítimos proprietários, por não poderem, em circunstância alguma, ser considerados instrumentos do crime.



O recorrente será notificado de que o apuramento de responsabilidades disciplinares deverá ser solicitado, no caso do Mmo. Juíz, ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, e dos restantes magistrados e funcionários intervenientes no processo, aos respectivos superiores hierárquicos.



Sem custas, por não serem devidas.





Maputo, 26 de Março de 1999

Ass: João Carlos de Almeida Trindade e José Norberto Baptista Carrilho