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[1998] MZTS 1
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Proc. n° 114/96 em relacao a Legitimidade das partes Foro competente (Proc. n° 114/96) [1998] MZTS 1 (9 October 1998)
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Proc. n° 114/96
Legitimidade das partes Foro competente
Sumário:
A questão de legitimidade plural só poderia ser julgada no saneador se, de acordo com a alínea c), do nº 1, do artº 510, do C.P.Civil, a questão de mérito fosse ùnicamente de direito e pudesse já ser decidida com a necessária segurança, ou se, sendo a questão de direito e de facto, ou só de facto, o processo contivesse todos os elementos para uma decisão conscienciosa.
Conhecer do mérito ou demérito de cada acto de nacionalização, como actos de soberania do Estado, não cabe nas competências dos tribunais judiciais.
Ácordão
Acordam, na Secção Cível do Tribunal Supremo:
A..., gerente comercial da sociedade J.V.H. Comércio Internacional, Ldª, sita na Av. do Trabalho, nº 1444, nesta cidade, propôs contra a Administraçao do Parque Imobiliário do Estado - A.P.I.E., acção declarativa de simples apreciação negativa com processo ordinário, alegando ser legítimo proprietário, desde 15 de Novembro de 1976, do imóvel sito na parcela 141B-539/1 do foral da cidade, confrontando por Nordeste em 14.87m com a rua D. João II, por sudoeste em 14.87m com a ex-Avenida Nossa Senhora de Fátima, actual Av. Kenneth Kaunda, inscrito na Conservatória dos Registos Comercial e Predial de Maputo, sob o n° 29.993;
Que sendo moçambicano e tendo-se ausentado do país, entre 1977 a 1990, porém, mantendo inequívoco interesse em voltar ao país e não tendo, vez alguma, declarado tácita ou inequivocamente a intenção de transmitir o imóvel em apreço, pede que seja declarado nulo e de nenhum efeito o arrendamento celebrado entre a Ré e o actual arrendatário relativamente, ao referido imóvel, como de bem nacionalizado se tratasse, restituindo-o à sua posse;
Refere que, tratando-se de cidadão nacional, pela sua ausência, não perdeu a titularidade dos bens que lhe pertencem, porquanto a situação não é enquadrável nas previsões dos Decretos Lei nº 5/76, de 5 de Fevereiro e 18/77, de 28 de Abril, que definem quais os bens imóveis sujeitos a nacionalização ou reversão a favor do Estado.
Juntou os documentos de fls. 4 e segs e fls. 9, designadamente, título de propriedade do referido imóvel, no qual consta inscrição a seu favor e certidão de inscrição no Registo Comercial e Predial de Maputo.
Citada a Ré, na pessoa do digno agente do MPº que inicialmente havia sido omitido, citando-se ùnicamente, o representante daquela, veio ela contestar, negando que A. seja o actual proprietário do imóvel referenciado, porquanto, por força do Decreto-Lei 5/76, de 5 de Fevereiro, foi o mesmo nacionalizado por ausência do seu proprietário do país, entre 1977 e 1990, consequentemente, revertendo para o Estado, ficando sob administração da entidade criada pelo Estado para gestão dos prédios nacionalizados, a “Administração do Parque Imobiliário do Estado” que nessa sua qualidade deu o mesmo de arrendamento ao Ministério da Defesa Nacional;
Refere ainda, que a falta de registo de propriedade do imóvel a favor do Estado, não pode, de modo algum, ser oposto pela A, pois que, os factos sujeitos a registo só não produzem efeito contra terceiros, tendo, porém, eficácia entre as partes, ainda que não sejam registados (sic.);
Que A. não pode ser considerado terceiro, pois que, a transmissão do prédio, muito embora forçada, operou-se da sua esfera jurídica para o Estado, por força do Decreto-Lei nº 5/76, de 5 de Fevereiro;
Conclui, que por tais razões, deve a acção improceder, absolvendo-se a Ré do pedido. Juntou os documentos de fls. 29 e 30.Não houve outros articulados.Prosseguiram os autos regulares termos, tendo-se procedido ao julgamento e,finalmente, proferiu-se sentença que concluindo não ter havido reversão do imóvel a favor do Estado, por não se configurar a situação de abandono por parte do seu proprietário, nem se provar que se tratasse de prédio de rendimento; deu por procedente a acção, declarando nulo o contrato de arrendamento celebrado relativamente ao mesmo, pelo A.P.I.E. e ordenando a devolução (sic.) do imóvel ao seu legítimo dono.Da sentença que assim decidiu, foi atempadamente interposto recurso (fls. 83), admitido e devidamente minutado, dando-se cumprimento ao demais de lei para o seu prosseguimento.Já nesta instância, a fls. 109 dos autos, veio B interpôr recurso ao abrigo do disposto no nº 2, do artº 680º, do C.P.Civil, justificando ser pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão, recurso que foi admitido, tendo-se dado cumprimento ao demais de lei.Nas suas alegações de recurso diz a recorrente B, único dos recorrentes que produziu alegações, que os factos, especificado um e levado ao questionário outro, anulam-se mútuamente, razão porque não deveriam ter sido formulados tal como estão;
Que a questão por decidir, traduz-se ùnicamente em questão de direito, pelo que a resposta à mesma não pode resultar de depoimentos de testemunhas, mas da aplicação das regras de direito aos factos já provados;Que em consequência, a decisão não poderia ser outra, senão considerar nacionalizado o imóvel em apreço, o que deveria ter sido julgado no despacho saneador;Efectivamente, aos factos uma vez confessados pelo próprio A. mais não cabia do que aplicar-se-lhes o direito. Assim, na douta sentença do tribunal “a quo” cometeu-se um erro de direito ao apreciar como matéria de facto questões de direito, o que conduz a nulidade da sentença, nos termos das alíneas c) e d) do n° 1 do artº 668º do C.P.Civil;
Que igualmente se está perante nulidade de sentença, pelo facto do juiz ter deixado de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar, como é a existência de litisconsórcio necessário, porquanto, na acção, impugnando o A. a validade do contrato de arrendamento celebrado entre a A.P.I.E. e terceiro, reconhece a existência deste, que é parte da relação material que se discute, com interesse directo em contradizer o pedido, razão porque deveria tê-lo chamado ao processo, como parte principal, por forma a garantir a intervenção de todos os interessados na relação material controvertida, de modo que a sentença alcançasse o seu efeito útil normal.Não tendo assim procedido, verifica-se a excepção da ilegitimidade da Ré que deveria ter dado lugar ao despacho liminar de indeferimento da petição inicial. Não tendo havido indeferimento liminar, tal excepção deveria ter sido conhecida no saneador;
Por outro lado, porque de litisconsórcio necessário se trata, a falta de notificação da apelante, não tem outra consequência que não a prevista na alínea a) do artº 197° do C.P.Civil, nulidade que é do conhecimento oficioso e que deveria ter sido apreciado, em primeiro lugar, na sentença, de acordo com o disposto no artº 660º, nº 1 do C.P.Civil.Assim, porque o meretíssimo juiz “a quo” deixou de conhecer questões de que devia ter apreciado e que o obrigaria a abster-se de conhecer do pedido, absolvendo a Ré da instância, torna nula a sentença proferida, de acordo com a alínea d) do artº 668º do C.P.Civil.Quanto ao facto constante do quesito único do questionário, tanto os documentos juntos, como os depoimentos das testemunhas não deveria ter conduzido a considerarem-no provado;
E, concluindo, afirma que, no caso em apreço, a aplicação do Decreto-Lei n° 5/76, por parte dos agentes do Estado, foi correctamente feita, porquanto o apelado ausentou-se por período superior a noventa dias sem que fosse ao serviço do país ou motivo de doença documentalmente fundamentado.Que a nacionalização do imóvel em causa operou-se de modo automático, a coberto do disposto no artº 5°, n° 1, ex-vi, artº 3º, nº 1, do citado Decreto-Lei;
A reversão do referido imóvel para o Estado, por força da nacionalização, nos termos referenciados, não acarreta de formalidades prévias, incluindo o registo, o qual pode ser feito a todo o tempo, uma vez que a lei não fixa prazo para o efeito;Que a decisão, assente na prova documental, designadamente, título de propriedade e certidão de registo predial, em nome do apelado, não tem qualquer sustentação, porquanto tais documentos estão despidos de validade, uma vez que a reversão já operara, por força do Decreto-Lei 5/76, de 5 de Fevereiro, no ana de 1977;
Que a ausência de inscrição e registo em nome do Estado, não tem por efeito fazer “ressuscitar jurídicamente” a inscrição que por força da lei da nacionalização se deve ter por cancelada, não podendo, por isso, traduzir-se em benefício para o apelado, por não ter sido essa a intenção da lei e muito menos do Decreto nº 12/90, de 4 de Julho, que impôs a obrigatoriedade do registo e, nem a lei fixou prazo para a efectivação deste, que pode ser feito pelo Estado a todo o momento, como efectivamente veio a acontecer no presente caso;
A A.P.I.E. celebrou o primeiro contrato de arrendamento do imóvel com o Ministério da Defesa, em 1977, vindo dez anos depois a celebrar outro com a apelante, que entretanto, ao abrigo da lei nº 2/91, de 16 de Janeiro, procedeu a compra do mesmo;
Que o apelado não registou na conservatória do Registo Predial, a propositura da presente acção, conforme impõe o artº 1º, do Código do Registo Predial, daí que, não se mostrando registada a acção judicial com anterioridade face ao registo de aquisição da apelante, sendo esta feita de boa-fé e a aquisição feita a título oneroso, os seus direitos mostram-se protegidos, conforme as disposições conjugadas dos artºs 291º, n° 2 e 271°, n° 3, ambos do C.P.Civil.Juntou os documentos de fls. 146, 147 a 155 e 156, designadamente, registo do imóvel em nome do Estado, título de propriedade em nome da apelante e registo do mesmo imóvel em seu nome.Contra-alegou o apelado, dizendo:Que as alegações de recurso apresentadas pela apelante, assentam em pressupostos errados;
Que os factos constantes dos autos e as razões de direito mostram, claramente, que a sentença recorrida julgou correctamente, com perfeita observância da lei, não merecendo quaisquer reparos;Que ainda que o quesito único do questionário seja relativo a questão de direito, dos factos articulados pelo A. e pelo que consta da especificação, só se pode concluir que o imóvel é propriedade deste;
Não há nos autos situação de litisconsórcio necessário, que mais significativamente surge nas acções constitutivas;O facto do apelado ter estado ausente do país, por mais de 90 dias, sem que estivesse ao serviço do Estado, não dá a este o direito de nacionalizar o seu imóvel, pois que, o Decreto-Lei 5/76 de 5 de Fevereiro, distingue a situação dos estrangeiros e dos moçambicanos, para efeitos de nacionalização dos imóveis.Assim, para os nacionais só poderia configurar-se a situação de nacionalização, se já residissem no estrangeiro, sem que estivessem ao serviço do país ou sem que estivessem autorizados a residir no exterior, pela autoridade competente. Outra situação seria a de estarem ausentes ou virem a ausentar-se por período superior a 90 dias, sem a devida autorização;
Que o apelado ausentou-se do país depois da publicação do referido Decreto-Lei e fê-lo devidamente autorizado, não tendo a A.P.I.E. quer o Ministério Público provado o contrário, como lhes competia;
Que todos os actos praticados pelo Estado, incluindo o registo do imóvel a seu favor, o arrendamento e a alienação eventualmente feitos, são nulos, pois, nunca ele foi proprietário do imóvel, por não o ter adquirido por qualquer das formas previstas na lei;
A necessidade de registo da acção, alegada pela apelante, resulta de mais um equívoco, pois, o artº 291º, do C.P.Civil, apenas estabelece aquela necessidade para as acções de declaração de nulidade ou de anulabilidade de negócio jurídico, o que não é o caso, pois, aqui trata-se da reivindicação do direito de propriedade do apelado, abusivamente negado pelo Estado, cujo reconhecimento tem como consequência a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre a A.P.I.E. e a apelante.
O Exmº Representante do Ministério Público junto desta instância produziu parecer, no qual, em resumo, refere que as irregularidades referidas na nota de revisão, possuem virtualidade para influir no exame e decisão da causa, inquinando todo o processo e, particularmente, a sentença, de nulidade absoluta, que pede seja, declarada.Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar: Antes de mais, necessário se mostra precisar que não obstante o faça de forma não directa, inequivocamente, o pedido formulado pelo A. foi o de reconhecimento do direito de propriedade, relativamente ao imóvel em apreço e consequente, restituição da sua posse o que determinaria a insubsistência do contrato de arrendamento celebrado entre a A.P.I.E. e a apelante B..., relativamente ao imóvel, no pressuposto do mesmo, em consequência das nacionalizações, ter passado a pertencer ao Estado e a integrar o seu parque imobiliário, sob administração daquela.Apenas houve dois articulados, petição inicial e contestação.
Nesta, não foram alegadas quaisquer excepções designadamente, a existência de litisconsórcio necessário que impusesse situação de ligitimidade plural, nem se configurava nenhuma das situações que por lei o exigissem, já que, do mesmo modo, inexistia qualquer contrato nesse sentido.
Refere a apelante B..., que houve erro de direito, pois, a questão deveria ter sido julgada no saneador. Sem razão, conforme entendemos, porquanto, de acordo com a alínea c), do n° 1 do artº 510º, do C.P.Civil, tal só poderia ocorrer se a questão de mérito fosse únicamente de direito e pudesse já ser decidida com a necessária segurança ou se, sendo a questão de direito e de facto, ou só de facto, o processo contivesse todos os elementos para uma decisão conscienciosa. Na verdade, a questão do reconhecimento do direito de propriedade não poderia ser provada apenas documentalmente, porquanto, saber se sobre ele teria ou não operado a nacionalização prevista no Decreto-Lei n° 5/76, de 5 de Fevereiro, funcionaria como facto impeditivo de tal direito, para além de que, naquele sentido, funcionaria, antes, em favor do apelado e não da apelada.
Não houve, pois, qualquer irregularidade que pudesse conduzir a nulidade do processo.Ao meretíssimo juiz “a quo” pediu-se que reconhecesse o direito de propriedade do A. sobre o imóvel em apreço, como pedido principal. Porque o direito de propriedade como direito real que é, é absoluto, impunha-se ao Mmº juiz que conhecesse de qualquer facto impeditivo do referido direito, como no caso, a alegada nacionalização do imóvel, como, alías, bem entendeu.Acontece que a nacionalização já operara, por força do Decreto-Lei 5/76, consubstanciada na consciência e modo de agir do Estado em face do referido imóvel, o que veio a ser posteriormente formalizado com o registo, como se vê de fls. 146 dos autos.
Não há, pois, quaisquer dúvidas de que o imóvel objecto da acção foi nacionalizado. Se bem ou mal, é questão que certamente se suscita, mas cujo conhecimento já não competirá a este tribunal, porquanto, conhecer do mérito ou demérito das nacionalizações, como acto de soberania do Estado, não cabe nas competências dos tribunais judiciais, cabendo aos tribunais administrativos.
Pelo que acima ficou exposto, a nacionalização traduziu-se num acto impeditivo do direito do A. e translativo da propriedade do imóvel da esfera jurídica do A. para a do Estado, que por sua vez, legitima e legalmente a transferiu para a apelante B..., ao abrigo do artº 1°, n° 1, do Decreto n° 2/91, de 16 de Janeiro. Só agora, em recurso, foi possível juntar aos autos, documentos relativos a tais factos ... registo da nacionalização do imóvel e da transmissão da propriedade do mesmo, à favor da apelante B ... o que é permitido pelas disposições conjugadas do n° 1, do artº 524°, e n° 1, do artº 706º, ambos do C.P.Civil.
Nestes termos, dando provimento ao recurso declaram nula a sentença da 1ª instância pelas razões e fundamentos acima indicados.
Porém, usando da faculdade estabelecida no artº 715º do C.P.Civil e porque se encontram remetidos todos os elementos que permitem conhecer do objecto da apelação, julgam improcedente o pedido formulado pelo recorrido, por se dar como verificado a nacionalização do imóvel em apreço e, como tal ter o recorrido deixado de ser titular do direito de propriedade sobre o mesmo e, quanto ao acto de nacionalização, não poder este tribunal conhecer da impugnação do mesmo, por tal matéria estar reservada ao foro administrativo.
Sem custas, por não serem devidas.
Maputo, 09 de Outubro de 1998
Ass: Afonso Armindo Henriques Fortes e Luís Filipe Sacramento