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Processo n.º 12/91 - 2ª em relacao a Indícios suficientes: Liberdade de expressão e opinião (Processo n.º 12/91 - 2ª) [1992] MZTS 1 (4 September 1992)

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Processo n.º 12/91 – 2ª

Indícios suficientes

Liberdade de expressão e opinião


Acórdão de 4 de Setembro de 1992

Sumário:


  1. Só a prova produzida em julgamento – ainda que logicamente relacionada e conjugada com os elementos recolhidos durante a instrução – pode constituír, nos termos legais, fundamento da decisão condenatória.

  2. A prova indiciária, resultante as mais das vezes da investigação oficiosa e obtida por métodos inquisitórios, tem de passar pelo crivo dos debates em audiência, para se afirmar como verdadeira prova.

  3. A Constituição da República de Moçambique, consagra no seu art. 74º, como direito fundamental dos cidadãos, a liberdade de expressão e de opinião, que deve ser respeitada e garantida.


Acórdão

Acordam, em conferência, os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal Supremo:



A, casado, nascido a 18 de Maio de 1941, Coronel-General das Forças Armadas de Moçambique (FPLM), filho de B e de C, natural de Chicumbane, província de Gaza, e residente em Maputo, na Rua da Sé, nº 104, vem pronunciado como co-autor material, e em concurso real de infracções, dos crimes previstos e punidos pelos artigos 6, nº 2, alínea b), e 15, da Lei nº 19/91, de 16 de Agosto, sendo-lhe imputados os seguintes factos:


  • Entre os meses de Outubro e Novembro de 1990, os co-réus D e E dirigiram-se à residência do réu Mabote, a fim de lhe desejarem as boas vindas, pois este acabava de regressar da República de Cuba, onde estivera a frequentar um curso militar durante cerca de três anos;


  • No decurso da conversa que se seguiu, o co-réu D falou dos problemas que assolam o país, citando, a título de exemplo, a desorganização do Exército e a corrupção generalizada no seio do Governo e das Forças Armadas de Moçambique, entre outros;


  • Na sequência da referida conversa, o réu A e os seus visitantes tomaram a resolução de alterar a situação prevalecente, para o que entenderam não haver outra alternativa senão o recurso a um golpe de Estado;


  • Uma vez concertados entre si, o réu e os citados D e E decidiram dar corpo à ideia, a qual passaria pela necessidade de se constituírem num grupo mais amplo, pelo que encetaram acções visando o recrutamento, quer de civis, quer de militares, para integrarem o aludido grupo, preferentemente entre indivíduos pertencentes às camadas sociais eventualmente descontentes ou revoltadas contra a ordem social estabelecida;


  • Assim, no mês de Novembro de 1990, o réu A e o D ensaiavam a primeira acção de recrutamento, visitando, em ocasiões diferentes, o co-réu F, o qual se encontrava recluso na Cadeia Civil, onde cumpria uma pena de prisão maior por prática do crime de homicídio preterintencional;


  • Naquela instituição prisional, desenvolveu-se uma conversa entre o co-réu F e os visitantes, na qual se fez uma resenha do passado e do presente das Forças Armadas de Moçambique, tendo os réus concluído existir um descontentamento generalizado nas FAM provocado, essencialmente, pelas seguintes razões:


  • não percebimento de vencimentos pelos soldados;

  • falta de abastecimento em víveres aos soldados;

  • falta de socorro a militares feridos em combate;

  • corrupção generalizada, envolvendo todos os escalões da hierarquia militar;

  • tráfico de armas e droga praticado por alguns oficiais generais e superiores das FAM;

  • incapacidade do Ministro da Defesa Nacional em dirigir o sector sob sua responsabilidade, facto que mergulhou o Ministério da Defesa Nacional num caos total.


  • No entanto, e porque um plano dessa natureza e envergadura envolvia ou demandava meios materiais e humanos de índole militar, foi opinião sufragada pelos co-réus A, D e F que se devia privilegiar, numa primeira fase, o recrutamento de militares, principalmente oficiais com funções de comando e eventualmente descontentes;


  • Como corolário desta decisão, o D convidou a aderirem ao grupo, por sua própria iniciativa ou por sugestão do réu A, os co-réus G, H, I, J, K e L, que passaram a integrar o núcleo organizador da acção golpista e aos quais se juntaram posteriormente outros elementos, a mando do D;


  • Posto isto, seguiu-se a fase de reuniões para elaboração de um plano de tarefas a serem executadas por cada membro, no quadro dos preparativos do golpe de Estado, mas o réu A não chegou a tomar parte em nenhum destes encontros;


  • Com efeito, a partir de certa altura o réu afastou-se voluntariamente do grupo, por ter medo, em virtude de haver sido chamado à atenção;


  • Apesar do seu afastamento, não revelou às autoridades a existência e os propósitos do grupo, donde se infere ter aceite a realização do golpe de Estado, pelo menos até 7 de Abril de 1991.


Após a pronúncia, prosseguindo a validade do processo e a regularidade da instância, foi o réu submetido a julgamento, de harmonia com o disposto nos artigos 144, nº 2, da Constituição e 39, alínea a), da Lei nº 10/92, de 6 de Maio - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais -, por virtude da sua qualidade de deputado da Assembleia da República. No decurso da audiência, defendeu-se pela forma constante da contestação escrita, apresentada pelo seu defensor oficioso e mandada juntar aos autos (fls. 694 e segts.), na qual, e em substância, alega que:


  • nunca integrou qualquer grupo com características de uma associação ilícita, que tivesse como objectivo preparar a execução de um plano visando, à força das armas, a atentar contra o Governo legalmente constituído;


  • nem esteve metido em qualquer acção cujo propósito fosse o de alterar a ordem jurídica estabelecida por via ilícita, impedindo o Chefe de Estado e o Governo de exercerem livremente as faculdades que, constitucionalmente, lhes são atribuídas;


  • não há acção nenhuma contrária à lei e passível de uma censura jurídico-criminal que lhe possa ser imputada;


  • se alguma intentona existiu, ou se realizaram actos preparatórios à execucão do crime, a tudo isso é alheio;


  • e, estando alheio aos actos preparatórios, está, logicamente, alheio à verificação do estado de operacionalidade dos meios a utilizar no alegado golpe de Estado;


  • por tudo isto, e por não ter cometido os crimes de que vem acusado, deve ser absolvido e mandado em paz.


Mantendo-se os pressupostos processuais apreciados no despacho de pronúncia, e não ocorrendo quaisquer outras nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa, cumpre, então, apreciar e decidir.


Tudo visto.


Face aos elementos de prova recolhidos nos autos, considera-se fixada a seguinte matéria de facto:


Em data imprecisa dos finais de Outubro ou princípios de Novembro de 1990, o réu A recebeu em sua casa, nesta cidade de Maputo, a visita dos irmãos D e E, que lhe foram desejar as boas-vindas, em virtude de ter regressado pouco antes da República de Cuba,


Na altura, visitado e visitantes conversaram sobre a forma como haviam decorrido os estudos do General e sobre assuntos familiares, porquanto o réu é parente da sra. M e esta, por sua vez, cunhada do D e do E. onde, durante cerca de três anos, frequentara um curso de formação em estudos militares.


Em momentos posteriores, o réu A voltou a encontrar-se algumas vezes com o D, quer em sua casa, quer na deste, pois visitavam-se regularmente.


Num desses encontros, provavelmente em Fevereiro de 1991, após o regresso do D de uma estadia em Gaza - de onde são ambos naturais -, falaram da situação militar naquela província, dos problemas que afectavam o país, de uma forma geral, e do roubo do gado que pertencera ao falecido Presidente Samora Machel.


Noutra ocasião em que se deslocou a casa do D, o réu encontrou ali o Major G, com o qual, algum tempo antes, estivera numa cerimónia de deposição de flores no Cemitério de Lhanguene. Como o referido oficial exercesse, ao tempo, as funções de comandante do Centro de Preparação Político-Militar da Moamba, interessou-se por saber dele notícias daquela unidade, bem como da situação militar na zona, nomeadamente quanto à segurança das vias férreas e dos postes de condução de energia eléctrica. Conversaram demoradamente sobre estes aspectos e também, entre outros, sobre os problemas de desorganização das Forças Armadas, da falta de alimentação para os soldados e dos alegados casos de corrupção no Exército, envolvendo o tráfico de armas e munições para a África do Sul.


Ainda numa das visitas ao D, em data que os autos não precisam, o General A avistou-se com o Major J, comandante do Centro de Instrução Militar da Manhiça. Este oficial havia sido convidado pelo dono da casa, que pretendia colocar-lhe algumas preocupações, como o pedido de desmobilização de seu irmão H - instrutor militar no aludido Centro e, consequentemente, subordinado do Major - e a recuperação do gado roubado, pertencente à família Machel. O réu aproveitou a ocasião para auscultar o Major J sobre as mesmas questões que havia discutido com o Major G: as dificuldades da unidade que comandava, a situação militar na região, a desorganização das Forças Armadas, o desvio e venda de armas, a deserção de soldados.


Idêntica conversa manteve o réu com o então Tenente-Coronel N, que, na altura, comandava a 6ª Brigada de Tanques. O encontro entre ambos ocorreu sensivelmente em meados de Março de 1991, também em casa do D, mas desta vez foi o General quem solicitou a presença do interlocutor, aproveitando a disponibilidade que o G e o H ofereceram para o contactar. O N informou o réu do estado operacional dos tanques e dos problemas organizativos da respectiva unidade.


Durante o período a que estes factos se reportam, o réu visitou algumas vezes na cadeia o Tenente-General na reserva F, que ali se encontrava a cumprir uma pena de prisão maior, em virtude de ter sido condenado por crime de homicídio preterintencional. Entre ambos, existiam laços de sólida amizade e camaradagem, pois haviam participado juntos na Luta Armada de Libertação Nacional. Também no decurso destas visitas o réu conversou com o General F acerca da situação difícil que o país atravessava, da necessidade de se reorganizar as Forças Armadas, nomeadamente a cadeia de comando do Exército e, enfim, dos mesmos problemas que foram tema das suas discussões com os oficiais anteriormente mencionados. Nos diálogos que manteve com F, o réu reconheceu não serem esses problemas recentes, pois já vinham do tempo em que chefiava o Estado-Maior General, mas entendia que já era altura de serem ultrapassados.


Entretanto, por volta dos finais de Abril ou princípios de Maio, o réu A foi abordado pelo Embaixador da República de Moçambique no Reino Unido, O - de quem era igualmente amigo e camarada de luta -, acerca do relacionamento que vinha mantendo com o D. Embora não o tivesse na altura revelado, o Embaixador havia sido mandatado pela sra. M no sentido de transmitir-lhe (ao réu) que não desejava de modo nenhum, e em circunstância alguma, ver o nome e o prestígio do seu falecido marido a ser utilizado para fins duvidosos e que o aconselhava a afastar-se do D, pois este era tido pela família como "pessoa pouco séria" e que "levava a vida com grande ligeireza".


A inquietação da sra. M quanto ao relacionamento entre A e D resultou de uma conversa que, dias antes, tivera com aquele seu cunhado, na qual lhe referira o facto de, ele e algumas pessoas, desejarem vingar a morte do Presidente P. Ao pretender saber quem eram essas pessoas, o D não lhe dera uma resposta clara e explícita, mas citara o nome do réu.


O General assegurou ao Embaixador Panguene não ser verdade que tivesse qualquer relacionamento especial com o D e, depois da chamada de atenção, foi ter com este e repreendeu-o por ter feito uso abusivo do seu nome.


Entre Maio e Junho do mesmo ano, o réu foi convocado para uma audiência com o Presidente da República, durante a qual lhe foi perguntado se sabia da existência de um grupo que pretendia realizar um golpe de Estado e que, ele (A) e o Tenente-General F eram tidos como elementos integrantes do referido grupo. A ambas as perguntas o réu respondeu negativamente, mostrando-se apreensivo. Comprometeu-se a falar com o F para esclarecer este assunto e informar posteriormente o Chefe de Estado, mas nunca chegou a fazê-lo, alegando que aquele fôra entretanto transferido para outro estabelecimento prisional.


Estes os factos que se dão por apurados na audiência de discussão e julgamento.


Como facilmente se observará, a prova aqui produzida, no tocante à comparticipação do réu A nas acções ilícitas de que vem pronunciado, não se revelou com aquela clareza e objectividade sempre exigíveis em Direito Penal, para que possa ser afastada qualquer dúvida razoável sobre a culpabilidade do agente.


Não foram, com efeito, reunidos elementos probatórios suficientemente idóneos e credíveis, na base dos quais fosse possível concluir, com toda a evidência, ter o réu tomado, em concerto com os irmãos D e E, a resolução de, por via de um golpe de Estado, atentar contra o regime político legitimamente constituído no país, ou, para a prossecução desse objectivo, ter organizado ou tomado parte num grupo mais amplo, ou, ainda, recrutado quaisquer elementos para a esse grupo se juntarem.


Nenhuma das testemunhas oferecidas pela acusação revelou ter conhecimento directo de que o réu tomara parte nas actividades criminosas. O Brigadeiro Q afirmou até, expressamente, não reconhecer o General A como membro do grupo que preparava a execução do golpe. Por seu lado, o Major R e o Tenente-Coronel S, à semelhança dos declarantes, General do Exército e Ministro da Defesa Nacional T e sra. M - também indicados pelo Ministério Público -, disseram não ter tido com ele qualquer contacto. Todos, sem excepção, referiram ter apenas ouvido dizer, sempre através dos co-réus D ou G, que o réu A estivera ligado ao projecto de resolução criminosa, mas que o abandonara quando se apercebeu que tinha sido descoberto. O mesmo se diga do Coronel e Ministro do Interior U, também ouvido na audiência de julgamento.


É verdade que, não só o D e o G, mas também o J, o N, o F e o H, todos co-réus do processo, declararam, nos interrogatórios a que foram submetidos na instrução preparatória, saber daquela ligação do General A. O G, o N e o J, afirmaram mesmo terem sido induzidos por este a juntarem-se ao alegado grupo golpista.

Acontece, porém, que tais declarações vieram a ser desmentidas pelos seus autores no julgamento e, por isso, têm de ser encaradas com a devida circunspecção.


A este propósito, e no sentido de esclarecer a análise crítica que nos suscitou o conjunto da prova carreada nos autos, impõe-se tecer brevíssimas considerações acerca do valor e limites da prova indiciária - ou seja, dos elementos de facto recolhidos durante a fase instrutória - em processo penal.


Consideremos as opiniões dos mais categorizados autores em matéria de Direito Processual, expendidas em comentário ou anotação aos preceitos pertinentes do Código de Processo Penal em vigor no nosso país.


Um desses autores, ao tratar das noções gerais da prova, escreve:


" A prova indiciária permite a introdução do processo em juízo e a sujeição a julgamento dos arguidos. A estes efeitos processuais se limita o seu valor. Não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já, não carece de prova, e a pronúncia torna apenas legítima a discussão judicial da causa. Tão pouco determina uma presunção legal, pois que a prova que pode servir de fundamento à decisão judicial é somente a que tiver sido produzida na discussão da causa, em audiência, e não a que, para fins intermédios do processo, consta do corpo de delito..."


Outro não menos prestigiado processualista expende o seguinte, à volta da definição de indícios suficientes:



" A lei não define, nem o poderia fazer com rigor, o que são indícios suficientes. Trata-se, certamente, de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados.


Não é possível determinar com exactidão a medida da suficiência dos indícios. No julgamento, terão os julgadores que ser mais exigentes; então exige-se certeza, cimentada através de uma sã apreciação crítica da prova, quando esta não é vinculada, enquanto que na fase da acusação se exige somente aquela convicção..."



A posição claramente defendida por estes dois reconhecidos especialistas vem, deste modo, confirmar aquilo de que estávamos certos: a jurisprudência deste tribunal sobre a questão agora em apreço está a desenvolver-se na direcção correcta.


Na verdade, só a prova produzida em julgamento - ainda que logicamente relacionada e conjugada com os elementos recolhidos durante a instrução - pode constituír, nos termos legais, fundamento da decisão condenatória. E compreende-se porquê. É que a prova indiciária, resultante as mais das vezes da investigação oficiosa e obtida por métodos inquisitórios, tem de passar pelo crivo dos debates em audiência, para se afirmar como verdadeira prova. Se ela não resiste à publicidade e fiscalização judicial nem à contraditoriedade da discussão, nenhum efeito de carácter substantivo se lhe pode reconhecer.


No caso sub judice, estamos em presença, fundamentalmente, de prova pessoal e indirecta não confirmada na audiência de julgamento. É por isso que não se lhe atribui relevância jurídica significativa, para efeitos de uma possível condenação.


Por outro lado, os factos que se consideraram provados também não preenchem nenhum tipo legal de crime, tanto mais que a Constituição consagra hoje, como direito fundamental dos cidadãos, a liberdade de expressão e de opinião, que deve ser respeitada e garantida.


Pelo exposto, julgando improcedente, por não provada, a acusação, absolvem o réu, Coronel-General A, a quem mandam em paz e em liberdade.


Comunique-se ao Registo Criminal e ao Arquivo Central da PIC.


Notifique-se.



Maputo, aos 4 de Setembro de 1992


Ass: João Carlos de Almeida Trindade (tem o voto concordante do Exmo. Juíz-Conselheiro, João Luís Victorino Júnior, que não assina por se encontrar ausente) – Luís Filipe Ferrão de Castel Branco Sacramento – Alberto Sebastião – Inês Rosário Xavier – Rudolfo Manhique.